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Davi junta as pedras
O governo de Taiwan amplia o tempo de serviço militar, de olho na crescente tensão com o “Golias” chinês


Para muitos habitantes de Taiwan, a ameaça de conflito com a China é uma perspectiva distante que paira no ar há cerca de sete décadas. A preocupação no Ocidente de que o Partido Comunista Chinês, liderado por Xi Jinping, esteja cada vez mais perto de tentar realizar seu objetivo de “reunificar” as duas partes, pela força se necessário, pode parecer histérica.
O único beneficiário da crescente tensão entre China e Taiwan são os Estados Unidos, que ganham dinheiro com a venda de armas para Taipei, brinca um morador de Kinmen, pequena ilha taiwanesa a poucos quilômetros da costa leste da China. Um eleitorado para o qual a ameaça de guerra terá consequências muito materiais são os jovens. A partir de 1º de janeiro de 2024, os homens nascidos após 2005 terão de cumprir um ano de serviço militar, contra os atuais quatro meses. A extensão foi anunciada em dezembro pela presidenta Tsai Ing-wen, que a chamou de “decisão difícil”, inspirada pelas lições da Ucrânia e pela necessidade de aumentar as capacidades de defesa de Taiwan. Neste ano, os militares também começaram a permitir mulheres voluntárias nas forças de reserva. “O Ministério da Defesa Nacional de Taiwan estudou a guerra Rússia-Ucrânia muito de perto”, diz Max Yu, major-general aposentado e ex-chefe da divisão cultural e psicológica do departamento de guerra política da pasta. “A estratégia de defesa dos soldados ucranianos e como eles defendem seu território tornou-se um modelo a ser seguido por Taiwan.”
Embora os civis taiwaneses possam parecer otimistas sobre a perspectiva de uma tentativa de anexação por Pequim, políticos e analistas militares estão cada vez mais preocupados com o fato de as defesas da ilha não serem fortes o suficiente para repelir uma invasão de um agressor mais poderoso. No primeiro semestre deste ano, houve 854 incursões do Exército Popular de Libertação chinês na zona de identificação de defesa aérea de Taiwan, contra 555 no mesmo período em 2022, segundo dados compilados pelos analistas de defesa Gerald C. Brown, Ben Lewis e Alex Kung, com base em estatísticas do governo.
As forças armadas de Taiwan têm cerca de 190 mil militares ativos e cerca de 2 milhões de reservistas. Enquanto a guerra na Ucrânia salientou a importância dos civis na contenção de um invasor poderoso, acredita-se que apenas uma fração dos reservistas esteja pronta para o combate. No ano passado, o governo anunciou planos para dobrar o número de reservistas treinados anualmente, para 260 mil, e intensificar o treinamento.
Historicamente, os políticos temem insistir em laços mais estreitos com os militares. Para os civis mais velhos, as forças armadas estão manchadas pelas memórias da lei marcial, quando Taiwan foi governada por uma ditadura militar brutal entre 1949 e 1987. Entre 3 mil e 4 mil críticos reais ou percebidos do governo militar foram executados durante as décadas conhecidas como “Terror Branco”. Cerca de 140 mil foram presos. Os militares sofrem de um “problema de percepção”, diz Dean Karalekas, especialista em relações civis-militares em Taiwan na Universidade Central de Lancashire, no Reino Unido. “Não foi feito o suficiente para se livrar completamente da associação persistente com seu passado (…) e adotar uma cultura institucional nova e mais aplicável como militares de Taiwan, para Taiwan.”
A maneira como os ucranianos defendem seu território contra a Rússia serve de inspiração
Ainda assim, as pesquisas sugerem que a opinião pública é esmagadoramente favorável a ampliar o recrutamento para um ano. Uma pesquisa realizada pela Fundação de Opinião Pública de Taiwan em dezembro descobriu que apenas um grupo etário era ligeiramente mais propenso a se opor à ideia do que a apoiá-la: jovens de 20 a 24 anos. Para os mais jovens, uma preocupação mais premente é a natureza do serviço em si. Mas alguns brincam: o atual programa de quatro meses gera “soldados de morango” que se machucam facilmente e carecem de treinamento e conhecimento úteis numa guerra. Em 2021, o Ministério da Defesa reformulou o programa de treinamento para os recrutas passarem mais tempo com as unidades em campo, mas ainda há reclamações de que os exercícios carecem de guerra urbana ou instrução de armamentos modernos. “Os detalhes do treinamento devem ser atualizados, não o tempo gasto”, diz Li Hao-lun, funcionário em Kinmen do governista Partido Progressista Democrático. “Os detalhes do treinamento são do passado, mas hoje falamos de uma guerra moderna.”
Enoch Wu, ex-soldado das forças especiais e fundador da Forward Alliance, um grupo de pensadores de defesa que oferece cursos de treinamento de defesa civil, “o público está preocupado que o serviço obrigatório seja estendido sem uma reforma substantiva”. Dean Karalekas observa: a promessa do Ministério da Defesa de alocar 800 cartuchos de munição para cada conscrito “não chega nem perto do suficiente para desenvolver a proficiência necessária”.
Como parte de uma campanha para promover a ideia do serviço nacional, o ministério publicou em abril uma história em quadrinhos no estilo mangá sobre um recruta que aprende sobre os valores do treinamento militar e as ameaças existenciais enfrentadas por Taiwan. O moral entre as tropas é outro problema, com alguns a temer que, diante da agressão chinesa, a derrota seja inevitável. Isso se deve em parte à “guerra cognitiva” chinesa, diz Max Yu. Agentes chineses espalham desinformação nas redes sociais sobre a corrupção nas forças armadas de Taiwan e a força do PLA, diz ele. Assim, além do treinamento militar, os recrutas taiwaneses assistem a vídeos semanais “para promover uma espécie de patriotismo”. Os vídeos são projetados para “fortalecer sua determinação a resistir à invasão” e “reconhecer a China como inimigo”.
O verdadeiro problema pode ser o dinheiro. Na última década, a participação dos gastos com defesa no orçamento do governo quase não se alterou. Mas agora os políticos mudam de rumo. No ano passado, o Legislativo aprovou aumento de 13,9% no orçamento de defesa para 2023, chegando a 2,4% do PIB. A alta de dois dígitos foi uma mudança acentuada na lenta evolução dos gastos com defesa desde 2017.
Em janeiro, os eleitores de Taiwan escolherão um novo presidente. Os dois principais partidos acusam o outro de ser o que aproximará Taiwan de um conflito com a China. Quem vencer a corrida, cavando fundo nos cofres do governo em busca de mais armas, mais soldados e mais treinamento, estará perto da vitória.
*Correspondente na China.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1268 de CartaCapital, em 19 de julho de 2023.
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