Mundo
Da liberdade à desilusão
O CNA, partido de Nelson Mandela, sofre o desgaste de 30 anos no poder


No coração de Soweto, o berço da democracia sul-africana foi queimado e saqueado. Quase 70 anos atrás, nos primeiros tempos do apartheid, mais de 3 mil moradores se reuniram numa praça empoeirada para redigir a Carta da Liberdade, que exigia uma série de direitos e proclamava que a África do Sul “pertence a todos os que nela vivem, negros e brancos”. Quando o apartheid terminou, em 1994, e Nelson Mandela foi eleito presidente com uma avalanche de votos, a Carta tornou-se a base da nova e otimista Constituição do país. Por isso fazia sentido, anos depois de sua divulgação, marcar seu aniversário e transformar a praça na área de Kliptown num local representativo da nova África do Sul.
Abriram-se lojas e escritórios, um museu, um monumento à liberdade. Para completar, foi inaugurado um novo hotel, anunciado como “o primeiro quatro estrelas, oferecendo hospitalidade africana no coração de Soweto”. Uma chama de liberdade foi acesa, cercada pelas palavras da Carta.
À época, a África do Sul estava em alta. Novas casas tinham sido construídas e o acesso à eletricidade e à água se estendera a todo o país. Embora grande parte de sua riqueza ainda repousasse em poucas mãos brancas, a classe média negra crescia e a nação se preparava para sediar a Copa do Mundo de futebol.
A África do Sul é um dos países mais desiguais e perigosos do planeta
Se os primeiros 15 anos de democracia foram um sucesso, entretanto, não se pode dizer o mesmo dos últimos 15. E o impacto pode ser visto claramente na praça onde nasceu a África do Sul moderna. A pobreza é galopante, o desemprego, elevado, e há três anos tumultos levaram ao incêndio e saque de lojas. Tudo o que podia ser roubado e vendido foi levado, inclusive as grades metálicas sobre os esgotos. O hotel continua aqui, mas os funcionários admitem que quase não recebe hóspedes. E no monumento onde está guardada a Carta a chama da liberdade se apagou há muito tempo.
A África do Sul que se preparava para ir às urnas, 30 anos depois das primeiras eleições democráticas, é uma nação em crise. É o país mais desigual e um dos mais perigosos do mundo. A economia está estagnada, com crescimento quase nulo em uma década e quase metade dos adultos desempregados. Os serviços públicos básicos desmoronam. Em muitas regiões não há água potável e os cortes de energia constantes tornaram-se uma característica habitual.
No centro de tudo está a corrupção. O que era uma questão menor sob Mandela e seu sucessor, Thabo Mbeki, explodiu quando Jacob Zuma chegou ao poder, em 2009. Quando foi destituído do cargo pelo Congresso Nacional Africano (CNA), em 2018, bilhões de rands haviam sido saqueados do Estado, deixando quase todos os órgãos falidos, da companhia aérea nacional à agência que administrava as ferrovias. “A autoridade fiscal foi efetivamente dominada por um sindicato de criminosos”, diz Anthony Butler, professor de Política na Universidade da Cidade do Cabo. “Revelou-se muito difícil reconstruir essas instituições.”
Memória esmaecida. Os jovens não sabem o que era viver sob o apartheid nem conhecem a importância revolucionária do CNA – Imagem: Arquivo Nacional/Holanda
Um inquérito sobre a “captura do Estado” concluiu que “o CNA sob Zuma permitiu e apoiou a corrupção”, embora o ex-presidente negue qualquer atuação direta. Depois dele, o partido tentou virar a página e escolheu como novo presidente um antigo aliado de Mandela, Cyril Ramaphosa. Apesar de admitir que a legenda “cometeu erros”, Ramaphosa não conseguiu mudar as coisas para melhor, e hoje é assombrado pelos antigos fantasmas.
Inabalado, Zuma formou seu próprio partido, o uMkhonto weSizwe (MK), nomeado em homenagem à antiga ala paramilitar do CNA, que atraiu apoio, especialmente na província de KwaZulu-Natal. Juntamente com a força de outro partido populista de esquerda, os Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF), liderado por Julius Malema, antigo líder da liga juvenil do CNA, as pesquisas de opinião sugerem que o partido de Mandela cairá a seu menor nível de apoio desde 1994 e poderá ficar abaixo de 50%, o que significa que teria de governar como um governo minoritário ou formar uma coalizão.
O tamanho da tarefa de Ramaphosa pode ser visto nas ruas de Alexandra, um dos maiores bairros populares de Johanesburgo e antigo reduto do CNA. “É imundo, densamente povoado e ingovernável”, descreve Vusi Khosa, nascido na região. “É a anarquia. Fazem o que querem.”
Segundo Queen Pungula, funcionária de uma creche, a criminalidade a mantém dentro de casa quando o sol se põe. “Às 18 horas não posso mais sair”. Pungula vive e trabalha num dos albergues de Alexandra, construído pelo governo do apartheid na década de 1970 para alojar migrantes de áreas rurais autorizados a vir para a cidade para trabalhar. Seu albergue é relativamente seguro, mas outros são famosos pela superlotação e pelos crimes.
A moradia ainda é um pesadelo para a maioria da população. Partes de Alexandra têm residências caras com muros altos e gramados bem cuidados, mas do outro lado da rua e na esquina há uma favela – casas de um cômodo em ruínas, feitas de blocos de concreto e ferro corrugado, com esgotos a céu aberto e gente amontoada. Nenhuma casa tem banheiro, por isso, ao longo de uma rua, centenas de banheiros químicos estão alinhados próximos a um muro. “Não temos vasos com descarga”, grita um pastor, Charles Mahumani. “Isso é um insulto para nós.”
O CNA não terá o voto dele, e também poderá não receber o de Khosa. Ele é filiado ao partido, mas, faz uma pausa e suspira: “Não sei. Não sei”.
“Não foi por isso que lutamos”, lamenta Bob Nameng, jovem eleitor
Khosa não é o único. Na maioria das democracias, um partido no poder há 30 anos e à frente de uma série tão tremenda de crises interligadas enfrentaria um longo período de oposição. Mas o CNA não é apenas um partido político – é um antigo movimento de libertação, e isso faz a diferença. Os sul-africanos têm uma atitude diferente em relação a um movimento que conquistou a liberdade. Para muitos, é uma relação complexa, e a decisão de votar no outro lado é tão emocional quanto racional.
Há um receio entre os apoiadores mais velhos do CNA de que a geração dos seus filhos não tenha consciência de como a vida era ruim sob o apartheid, ou de como o CNA foi vital para acabar com o sistema racista. “Eu sei de onde vim”, resume Frank Baloyi, professor de 56 anos na praça da liberdade de Kliptown, oficialmente chamada Praça Walter Sisulu. “Eu vim do apartheid. Se você é daquela época, você entende. Não havia facilidades. Nós sofremos muito.” Ele descreve as falhas do CNA como “pequenos erros” cometidos por “seres humanos”. Os jovens “não entendem o que passamos”, lamenta.
Essas preocupações estão presentes entre a liderança do CNA. “Estamos apelando aos sul-africanos para que nos deem mais uma chance”, diz Snuki Zikalala, presidente da liga de veteranos da legenda e aliado de Mbeki, que retornou à linha de frente da política após o fim de Zuma.
Eles não apenas imploram, prometem. O salário mínimo subiu 8,5%, os subsídios sociais aumentaram e neste mês Ramaphosa sancionou uma lei nacional de seguro-saúde. O que não foi dito é como o governo pagará por isso.
Zikalala admite que o partido perdeu o rumo sob Zuma, que “derrubou todo o Estado sul-africano. É por isso que o país está uma bagunça. Andamos cem anos para trás. Era tudo para ele e sua família”. Mais parecido a um político da oposição do que a um governista, acrescenta: “Temos tudo neste país. Se conseguirmos uma governança adequada e administrá-lo profissionalmente…”
O CNA ainda governará o país depois das eleições, mas, se as pesquisas estiverem certas, será em uma coalizão. Suas potenciais alianças estão, no entanto, cheias de problemas. Como poderá fazer um acordo com Zuma, que hoje admite abertamente ter cometido um dos maiores escândalos de corrupção oficial em qualquer parte do mundo? Como pode fazer um acordo com o partido EFF de Malema, que quer se apropriar de terras e que, segundo Zikalala, “não acredita no Estado de Direito”?
Dos principais partidos, resta apenas a Aliança Democrática, de centro-direita, que se opõe às despesas sociais do CNA e, mais importante, é visto como dominado por brancos e servil a eles.
Grandeza. Mandela governou em tempos de esperança e otimismo. Seu legado está agora ameaçado – Imagem: Adam Jacobs
É difícil encontrar otimismo. Mas Butler, autor de uma biografia de Ramaphosa, acredita que o presidente pode ser o nome certo para esta situação. “Ele é um político de consenso, um negociador. É exatamente o líder que você desejaria para um período de governo de coalizão. É o negócio dele.” Além disso, acrescenta, “não há mais ninguém. Ele é tudo o que eles têm”.
Há outra questão sobre o que acontecerá depois das eleições: para onde irá a raiva se as coisas não melhorarem? Vários cidadãos resmungavam sombriamente sobre os estrangeiros, acusando-os de aceitar empregos e de serem responsáveis pela criminalidade. Os migrantes, predominantemente do país vizinho Zimbábue, podem representar apenas 3% da população, mas a proporção é mais elevada nas cidades mais pobres, mais densamente povoadas e mais infestadas pelo crime. A África do Sul foi atingida por ondas de violência xenófoba nos últimos 16 anos, e alguns partidos adotaram uma posição anti-imigração.
Também há motivos para ter esperança. Ninguém duvida que as eleições serão livres e justas. Ao contrário dos Estados Unidos, não há possibilidade de uma tentativa de golpe se o CNA perder o poder. As instituições, especialmente o sistema judicial, permaneceram independentes e fortes. Existe uma imprensa livre e vibrante. E quando o Estado entrou em colapso, as empresas e a sociedade civil intervieram, fornecendo saúde e educação, prestando serviços sociais, tapando buracos. Apesar de tudo, a África do Sul continua a ser um país de empresas de sucesso, criatividade vibrante e uma indústria turística próspera.
Em Kliptown, nos trilhos que saem da praça, Bob Nameng discorda. Chefe de uma organização juvenil local, aponta a Carta da Liberdade e suas proclamações sobre a nova África do Sul. “É uma besteira, uma contradição. Você fala de terra – nós estamos congestionados aqui num pequeno pedaço. Você fala de direitos – não há direitos aqui.” Ele não votará no CNA. “Não posso me dar ao luxo de me vender novamente.” Em vez disso, apoiará a EFF de Malema. Não que tenha esperança de que algo vá mudar. “Nada está bem em nosso país. Não posso mentir. Não foi por isso que lutamos.” •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1313 de CartaCapital, em 05 de junho de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Da liberdade à desilusão’
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