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Crise econômica é ponto central para decisão das eleições na Argentina

Expectativa para o resultado da votação neste domingo é de que se confirmem os números das eleições primárias: derrota de Macri

Manifestação pró-Macri na Argentina (Foto: Luciana Rosa)
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No sábado 19, antes da votação do primeiro turno das eleições para presidente, governadores e intendentes da Argentina que acontece neste domingo 27, o Obelisco ficou rodeado por cidadãos vestidos com a camiseta da seleção e outros apenas carregando o branco e celeste de sua bandeira. Atendendo ao chamado, uma última cartada, de seu candidato a presidente Maurício Macri, alguns dos pouco mais de 30% de votantes ativos do “Juntos por el Cambio” se reuniram no centro nevrálgico de Buenos Aires para gritar “Si, se puede”, uma adaptação do “Yes, We Can” de Barack Obama, que se traduz como “Sim, é possível”.

Para os cerca de 500 mil militantes, contrariando todos os diagnósticos de especialistas, ainda é possível reverter a diferença mais de 15 pontos entre o primeiro colocado Alberto Fernández (47,78% dos votos) da chapa de Cristina Kirchner, e Macri (31,79% dos votos) obtidos nas eleições primárias.

O que definitivamente não foi possível nesses quatro anos de governo foi reverter a difícil situação que a vive a economia argentina. Pelo contrário, 56 bilhões de dólares de empréstimo contraído com o FMI e uma recessão que assola o país desde, pelo menos, metade deste ano, inflação anual projetada para 55% e um índice de crescimento tímido, o país vive um de seus momentos mais críticos desde o colapso de 2001.

É possível ver as consequências dessa crise ao observar o aumento de um 5%, ou um total de 1146 indivíduos que vivem nas ruas da capital, segundo dados do Ministério de Desenvolvimento Humano e Hábitat. Algumas delas camufladas entre os portenhos de classe média e classe média alta que se juntaram no último sábado para dizer aos Kirchneristas que “não voltem mais”.

Muito semelhante ao que ocorreu no Brasil com relação ao fator eleitoral “ódio ao PT”, na Argentina também um dos grandes motores de decisão eleitoral está condicionada pelo medo de que volte Cristina. CartaCapital perguntou a um casal de manifestantes o porquê de estar na marcha. “Para apoiar ao Macri!”, responde o homem que não quis se identificar. Ao perguntar se ele está satisfeito com o governo, responde que “sim”, ao que sua esposa interrompe, exclamando: “Não, mas não queremos que voltem os K”. Nova pergunta: “Sua principal motivação seria que não volte um governo Kirchnerista?” Resposta monossilábica: “Sim”.

Outro manifestante, Juan, diz que compartilha algumas das ideias de Bolsonaro e que foi à marcha “porque o Macri tem que continuar governando o país para que não voltem os delinquentes. Senão estamos na lona. Já os tivemos durante muitos anos. Roubaram todo um país (em dinheiro), a presidenta processada e candidata, portanto, se o Maurício não ganha, já viu, estaremos como está Venezuela, igual!”, lamenta.

Voltar a comer ‘assado’

“Voltaremos a comer assado”, vociferaCarlos Garcia, jovem de 32 anos, provocando os militantes macristas que voltavam para casa logo após o ato de apoio #SiSePuede. Segundo ele, “o de comer assado é uma piada interna porque tem a ver com o fato de que hoje em dia as pessoas que estão mais abaixo na estrutura social. Poderemos voltar a ir à universidade, ir a um hospital”, esclarece.

“Nem sou kirchnerista ou peronista. Sou de esquerda. Mas a verdade é que eu não sou daqui da capital, eu sou do conurbano (zona metropolitana) e durante os dez anos do governo anterior eu vi uma ampliação de direitos. Os recursos se moveram para um setor mais baixo. Isso eu vivi. Eu vi”, relata, justificando o voto que depositará na urna no próximo domingo.

Ato em favor de Macri na Argentina (Foto: Luciana Rosa)

Apesar de estar parcialmente acostumado às crises econômicas, o povo argentino, dessa vez, viu-se afetado em alguns dos pontos fundamentais de sua qualidade de vida. Houve, nesse último ano, uma drástica diminuição – cerca de 11% – no consumo de carne. Além disso, a elevação do preço do leite levou à criação de clubes de leite por parte de organizações sociais para garantir o acesso das famílias carentes ao produto por um preço fixo.

“O aumento da pobreza, segundo nossas estimativas, no final do terceiro trimestre, já estava em 38% da população”, pontua o diretor do Observatório da Dívida Social, Agustín Salvia, da Universidade Católica Argentina. Segundo estudos realizados pelo Observatório, cerca de 8% dos argentinos vivem abaixo da linha da pobreza e, entre eles, cerca de 15% são crianças vivendo em lares com redução severa em sua dieta alimentar.

“Este aumento da pobreza e da indigência por ingressos também se relaciona com outros efeitos em matéria de bem-estar, como é o caso da insegurança alimentar, ou seja, reduções no acesso a itens fundamentais para a nutrição e a elevação de experiências de fome, ou seja, de risco alimentar severo”, explica Agustín.

O fator “bolso” que atinge não apenas a classe mais baixa, mas que acabou impactando também o consumo da classe média do país é apontado por especialistas como o principal fator para o fracasso de Macri nas urnas. “Não é possível entender a situação na qual o governo está hoje, se não se observam as cifras da gestão econômica que realmente foi muito ruim. O PIB argentino encolheu em 3 dos 4 anos de mandato e, enquanto outros governos tiveram problemas de inflação e queda da atividade econômica, Mauricio Macri teve ambos, somado ao aumento do desemprego”, alerta a doutora especializada em Governo pela Universidade de Georgetown, María Esperanza Casullo.

Na opinião da cientista política, o grande fator de desapontamento do eleitor do Macri foi “justamente a imagem que deu – na campanha em 2015 – de que a economia era sua área de fortaleza e que tinha uma equipe muito sólida tecnicamente. Que seria uma gestão muito baseada no técnico e uma vez que essa promessa se rompe, já praticamente não ficou mais nada”, sentencia.

Chapa de Alberto Fernández e Cristina Kirchner derrotou com vantagem de mais de 15 pontos percentuais o presidente Mauricio Macri, nas eleições primárias de 11 de agosto (Foto: Frente de Todos Media)

E mesmo com a mudança de governo e o retorno do peronismo, existe “um cenário complicado que não vai encontrar soluções a curto prazo e médio prazos. Ganhem os Fernández ou não, haverá um política austera tratando de reativar o consumo nos setores populares com cartões alimentares ou programas assistenciais. Serão postergados os reajustes tarifários, em função de dar aos segmentos baixos alguma capacidade de reação e sobrevivência, mas sem que isso implique uma mudança qualitativa em termos de um novo ciclo de crescimento da economia”, avalia Salvia.

Para o pesquisador, o ano que vem seguirá sendo recessivo e o novo governo terá que pagar dívidas e diminuir a inflação sem que isso seja feito de forma agressiva, senão de forma gradual. “São os desafios que tem a política econômica e a política social porque, ao mesmo tempo, tem que evitar que aumente a pobreza e a exclusão com o objetivo de que não ocorram revoltas sociais como o que está ocorrendo no Chile” conclui.

O futuro do Macri

A expectativa para o resultado da votação neste domingo é de que se confirmem os números já registrados nas Eleições Primárias do dia 11 de agosto. Para o cientista político Patrício Tavalera, as PASO acabaram se transformando em um primeiro turno de fato.

“Os antecedentes de reversão dessas tendências, a nível mundial dos últimos 80 anos, mostra uma possibilidade de reversão de 36% dos casos. Estamos falando de uns 42 casos sobre um 116 cenários de segundo turno em todo o mundo (…) e, dessas reversões, somente em duas eleições conheceram a diferença excedia os 15 pontos entre o primeiro e o segundo turno, Gana e Afeganistão. Dois exemplos, são pouco ductiles para aplicar à realidade argentina “, lembra Tavalera.

Macri (Foto: AFP)

Com uma derrota quase certa, surge a dúvida de qual será o futuro político do ex-chefe de governo da cidade de Buenos Aires e ex-diretor do Boca Juniors, Mauricio Macri. “Este ano houve especulações de que, caso perdesse as eleições, ele ia se retirar da política e se mudaria para a Itália ou a Espanha. Mas, realmente, a julgar pelo último mês das suas atividades, ele estaria na verdade muito decidido a concentrar seu núcleo duro, a consolidar-lo, a desenvolver uma relação bastante pessoal com esse 30% de votantes e apostar a ser, pelo menos, um dos líderes da oposição”, observa María Esperanza Casullo.

Por outro lado, Patrício Tavalera acredita que “a construção de um cenário de centro-direita que inclua elementos do peronismo, deveria passar por Horário Rodríguez Larreta” –  atual chefe de governo de Buenos Aires pelo PRO. No entanto, diz que “o rol do Macri vai ser central para complicar ou facilitar uma herança na construção de uma alternativa” .

“O Cambiemos, ainda que repetindo os números das PASO, teria o máximo de bancas que qualquer oposição democrática desde 1983. É muito difícil que fique abaixo dos 100 deputados”, prevê.

Situação que poderia ajudar a posicionar Macri, em caso de não deixar a política, como ator central dentro das forças de oposição. “Vai implicar que o governo terá que trabalhar com muito esmero alianças parlamentares porque vai ter uma oposição potencialmente forte, competitiva, e com todos os incentivos para fazer frente de forma radicalizada aos projetos, tanto econômicos, quanto políticos que tenha a nova administração”, conclui.

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