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Crise contratada

Com menos de um ano no poder, o premier François Bayrou está com a cabeça a prêmio

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Bayrou foi uma aposta de Macron – Imagem: Lodovic Marin/AFP
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A Assembleia Nacional da França votará na segunda-feira 8 um corte de 44 bilhões de euros, o equivalente a 278 bilhões de reais, no orçamento do próximo ano. O país tornou-se o mais endividado da Europa, atrás apenas da Grécia e da Itália, e o próprio ministro das Finanças, Eric Lombard, cogitou pedir socorro ao Fundo Monetário Internacional, drama até pouco tempo impensável para a potência que, ao lado da Alemanha, figura como um dos motores do continente. “Um perigo imediato paira sobre nós e temos de enfrentá-lo, não amanhã ou depois de amanhã, mas hoje, sem nenhum tipo de protelação. Do contrário, não teremos futuro”, apelou o primeiro-ministro, François Bayrou, ao condicionar o seu destino político aos rumos nacionais.

Caso o corte orçamentário não seja aprovado, Bayrou perderá o cargo. E se ele cair, o país vai junto. Ao menos esse é o argumento esgrimido pelo presidente ­Emmanuel Macron aos deputados. O problema é que, à direita e à esquerda, ninguém compra esse discurso. Bayrou foi indicado por Macron em dezembro de 2024. Sua posição sempre foi precária, pois o governo não tem maioria na Assembleia Nacional e ainda assim o presidente da República impôs sua vontade ao nomeá-lo.

A França tem um sistema híbrido, misto de presidencialismo e parlamentarismo. A parte presidencialista diz respeito à eleição direta para presidente, que tem mandato de cinco anos e direito a uma única reeleição. Macron venceu em 2017 e 2022, e não é o mandato dele que está em jogo. Cabe, porém, ao presidente indicar um chefe de gabinete ou primeiro-ministro que, para se manter no cargo, precisa da aprovação da maioria do Parlamento, onde há 577 assentos. Quando a coligação governista não obtém ao menos 289 cadeiras – e a coligação de Macron tem apenas 211 –, a oposição conquista o direito de indicar o primeiro-ministro, para que ele exerça o posto em regime de coa­bitação com o presidente. Uma alternativa é o presidente forçar a indicação de alguém de sua confiança, ficando sujeito a um voto de desconfiança a qualquer momento, exatamente como acontece agora com Bayrou e aconteceu com seu antecessor, Michel Barnier, que durou apenas três meses no cargo.

A situação precária do governo Macron instalou-se em julho de 2024, quando o presidente francês resolveu dissolver a Assembleia Nacional e antecipar as eleições. A intenção era confirmar uma maioria nas urnas e solidificar a base parlamentar para tocar as reformas e navegar mais tranquilamente até o fim do mandato, em 2027. O tiro saiu, no entanto, pela culatra, e a coligação governista fez apenas a terceira maior bancada. Tanto a extrema-direita, com o partido Reunião Nacional, da veterana Marine Le Pen e da estrela ascendente Jordan Bardella, quanto a esquerda, reunida em torno da França Insubmissa, de Jean-Luc Mélenchon, reivindicaram o direito de indicar o primeiro-ministro, mas Macron ignorou os adversários e bancou seus indicados, que enfrentaram, até aqui, seis votos de desconfiança.

A cada nova eleição na França, a extrema-direita mostra mais poder. ­Macron sempre apresentou-se como uma alternativa realista e viável contra os radicais, só que, em algumas áreas – especialmente transferências, defesa e imigração – suas políticas se tornaram tão próximas das propostas de Le Pen e seus correligionários que os eleitores passaram a aceitar correr o risco de votar na esquerda de uma vez. A frente liderada por Mélenchon chegou em primeiro, mas não levou. E o resultado é que nenhuma força política é preponderante. Nesse contexto de fragmentação, disputa acirrada e desconfiança, a Assembleia Nacional decidirá se empurra Bayrou para o precipício, como fez com Barnier. E a única boia à qual o atual primeiro-ministro se agarra é a ameaça de que, se cair, a economia nacional mergulhará num abismo sem fim. “Não há saída se não percebermos a gravidade desse risco”, diz Bayrou. “É a nossa liberdade que está em jogo. É a nossa soberania e independência.”

Se o orçamento não for aprovado, o aliado de Macron perde o cargo

Para Le Pen, que, embora inelegível, ainda arrasta grande parte do eleitorado, os franceses estão, no entanto, “plenamente conscientes da crise econômica e financeira em que o nosso país está mergulhado após oito anos de macronismo, uma crise que se junta a tantos outros fracassos que colocam em risco a própria sobrevivência da nossa nação”.

O déficit público francês em 2024 foi de 168,6 bilhões de euros, cerca de 1 trilhão de reais, o equivalente a 5,8% do PIB. Só no pagamento anual de dívida, o país gasta atualmente 66 bilhões de euros, ante 60 bilhões de euros no ano passado. O valor corresponde a todo o orçamento nacional de educação ou de defesa, e a projeção é de que, nesse ritmo, chegará a 107 bilhões de euros, um pouco mais de 680 bilhões de reais, em quatro anos.

O governo Macron ainda não tem um plano claro sobre o dia seguinte. A votação da segunda 8 diz respeito à decisão de promover o corte orçamentário. Só depois o país discutirá de onde exatamente vai sair esse dinheiro, o que significa negociar exaustivamente com todos os partidos políticos e, principalmente, com os sindicatos que, na França, têm poder imenso, graças aos acordos coletivos acertados com todas as categorias.

Macron, por sua vez, anda imerso numa agenda internacional frenética. Desde a saída britânica da União Europeia, ele chamou para a França o papel de dínamo de um bloco que ameaça se espatifar diante da pressão crescente de um nacionalismo europeu de extrema-direita que sabota, nos 27 países, o antigo plano de uma união organizada pela burocracia de Bruxelas. O dínamo francês passou a girar ainda mais rápido depois da invasão da Ucrânia em larga escala, pela Rússia, em 2022.

O problema para o Macron europeísta é que o protagonismo do Velho Continente depende de dois fatores incertos no momento: o consenso entre as próprias forças políticas europeias, na direção de uma integração e uma interdependência coesas, e a capacidade de canalizar recursos nessa direção, que, hoje, em virtude da guerra na Ucrânia, passa pelo aumento significativo dos gastos com defesa.

Todos os integrantes da Organização do Tratado do Atlântico Norte comprometeram-se a elevar as despesas militares a, no mínimo, 2% do próprio PIB. O problema é como esticar um cobertor orçamentário cada vez mais curto, que, diante dos cortes, já não consegue sequer cobrir os pés dos aposentados. Eis o coelho que Bayrou tentará tirar da cartola, diante de uma Assembleia Nacional descrente, insatisfeita e sem receio de implodir o precário arranjo de poder. •

Publicado na edição n° 1378 de CartaCapital, em 10 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Crise contratada’

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