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Crime de guerra
Três autoridades da Síria enfrentam julgamento histórico em Paris pela morte de dois cidadãos franco-sírios


À meia-noite de 3 de novembro de 2013, cinco oficiais sírios arrancaram o estudante de Artes e Ciências Sociais Patrick Dabbagh, de 20 anos, de sua casa no bairro de Mezzeh, em Damasco. No dia seguinte, na mesma hora, os mesmos homens, incluindo um representante da unidade de inteligência da força aérea síria, retornaram com mais de dez soldados para prender o pai do jovem, Mazzen. Eles acusaram o conselheiro educacional de 48 anos do liceu francês da cidade de não ter criado seu filho adequadamente. “Vamos ensinar você a educá-lo”, disseram, sem esclarecer o motivo da prisão.
Seria a última vez que alguém da família os veria. Quase cinco anos após a detenção, ainda não havia qualquer informação sobre o paradeiro dos cidadãos franco-sírios. Nada até julho de 2018, quando as autoridades emitiram certificados declarando que Patrick Dabbagh tinha morrido em janeiro de 2014 e Mazzen Dabbagh, em novembro de 2017. Nenhuma causa de morte foi informada, e os corpos não foram devolvidos à família.
Na terça-feira 14, três graduadas autoridades sírias serão julgadas em Paris por envolvimento em crimes contra a humanidade e crimes de guerra, ligados ao desaparecimento e morte dos Dabbagh: Ali Mamlouk, de 78 anos, chefe dos serviços secretos sírios e conselheiro de segurança do presidente Bashar al-Assad; Jamil Hassan, de 72 anos, chefe da unidade de inteligência da força aérea síria até 2019; e Abdel Salam Mahmoud, de cerca de 60 anos, diretor do famoso centro de detenção de Mezzeh, onde pai e filho teriam sido detidos. Eles são acusados de cumplicidade em sua prisão, tortura e morte.
Já foram realizados julgamentos de sírios nos Países Baixos, na Alemanha e na Suécia, mas é a primeira vez que figuras do alto escalão, próximas de Assad, serão responsabilizadas. Os acusados não comparecerão ao tribunal, mas ativistas dizem que o caso reforça os apelos por justiça e dá esperança às famílias de mais de 111 mil desaparecidos na Síria desde 2011.
“É histórico porque estas são as autoridades mais graduadas do regime sírio a ser julgadas”, disse a advogada francesa Clémence Bectarte, que representa a família Dabbagh. “É importante não só para esta família, mas para muitos outros sírios. Há famílias de pessoas desaparecidas que ainda aguardam notícias de seus entes queridos ou dos corpos dos que foram mortos. Ainda é um problema contemporâneo.”
O conflito sírio começou com protestos e comícios pró-democracia na Primavera Árabe em 2011 e escalou para uma guerra civil, com uma revolta maciça contra Assad no ano seguinte. Acredita-se que mais de 15 mil sírios tenham sido torturados até a morte por funcionários da inteligência síria. Mais de 230 mil civis, incluindo 30 mil crianças, teriam sido mortos no conflito, de acordo com a Rede Síria para os Direitos Humanos.
A acusação pode abrir caminho para a responsabilização de Bashar al-Assad
Apesar da guerra, Assad foi reabilitado no mundo árabe nos últimos 12 meses, convidado para cúpulas da Liga Árabe e reuniões com outros líderes regionais. O julgamento destaca a crescente determinação dos Estados europeus de processar crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio sob o princípio da jurisdição universal, que permite aos países julgar os perpetradores independentemente de sua nacionalidade ou do local onde os crimes foram cometidos.
Em novembro do ano passado, a França emitiu um mandado de detenção internacional para Assad pelo uso de armas químicas contra civis. Três outros, incluindo o irmão de Assad, Maher, também foram indiciados pelo uso de gás sarin, proibido por convenção internacional, em dois ataques em agosto de 2013 que mataram mais de mil sírios, incluindo centenas de crianças. Acredita-se que seja a primeira vez que um chefe de Estado em exercício é alvo de um mandado de prisão num terceiro país por crimes contra a humanidade. Espera-se que um tribunal francês decida se a investigação sobre Assad poderá prosseguir ainda este mês.
A França criou uma unidade específica para crimes de guerra em 2012, mas até agora o princípio da justiça universal tem sido limitado pela exigência de que tanto o acusado quanto a vítima tenham uma ligação tangível com a França, através da nacionalidade ou da residência.
Durante a investigação francesa que levou às acusações contra as autoridades no caso Dabbagh, mais de 20 sírios, na maioria sobreviventes da prisão de Mezzeh, descreveram as condições no local, bem como detalharam a cadeia de comando dos serviços de inteligência na época em que pai e filho foram detidos. Bectarte afirma que o julgamento não seria possível sem seus depoimentos sobre “a terrível realidade dos crimes cometidos nas prisões de Bashar al-Assad”.
“Numa altura em que o regime sírio parece sair impune de todas as atrocidades cometidas, é essencial que este julgamento, parte de uma longa luta contra a impunidade, qualifique os crimes do regime e responsabilize seus mais altos membros”, avalia a advogada. “O objetivo é que não haja fuga da justiça. Este não será o último julgamento.”
Mazen Darwish, do Centro Sírio para a Mídia e Liberdade de Expressão, acrescenta: “Além de Mazzen e Patrick Dabbagh, centenas de milhares de homens e mulheres sírios morreram durante o conflito sírio, especialmente nas mãos do regime de Bashar al-Assad. As famílias deles ainda esperam por justiça.” •
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.
Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Crime de guerra’
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