Mundo
Costas largas
Protegido pelos EUA, Israel ataca o Tribunal de Haia e os países europeus que reconheceram o Estado Palestino
O governo de Israel ainda lançava ogivas retóricas em direção ao procurador do Tribunal Penal Internacional que recomendou a emissão de um pedido de prisão do primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, e seus principais ministros por crimes de guerra quando outro gesto simbólico, de maior repercussão e efeito, abriu outro flanco na batalha verbal. Na manhã da quarta-feira 22, em um movimento sincronizado e inédito na União Europeia, Noruega, Espanha e Irlanda reconheceu de forma unilateral o Estado da Palestina. A partir de agora, os três países passam a considerar como violação qualquer conduta que ameace as fronteiras estabelecidas em 1967. “Pedimos um cessar-fogo, mas não é suficiente. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu se faz de surdo e continua a castigar a população palestina”, discursou em Madri o premier espanhol, Pedro Sánchez. “Netanyahu não tem um projeto de paz. Lutar contra o Hamas é legítimo, mas sua operação coloca a solução de dois Estados em sério perigo. O que faz apenas amplia o ódio”. Em Dublin, quase simultaneamente, Simon Harris, líder do governo irlandês, reforçou: “A paz permanente só pode ser garantida com base na vontade livre de um povo livre. Os palestinos em Gaza suportam os mais terríveis sofrimentos, dificuldades e fome. Uma catástrofe humanitária, inimaginável para a maioria e inaceitável para todos se desenrola em tempo real”.
Tel-Aviv reagiu como o esperado. O governo israelense convocou seus embaixadores nos três países, gesto prévio a um eventual rompimento das relações diplomáticas, e o chanceler Israel Katz distribui ameaças. “Envio uma mensagem clara à Irlanda e Noruega, não vamos recuar diante daqueles que minam nossa soberania e colocam em riso nossa segurança. Israel não vai aceitar em silêncio, haverá consequências graves. Se a Espanha concretizar a intenção de reconhecer o Estado Palestino, medida semelhante será tomada contra ela”, redarguiu. “A decisão de hoje envia uma mensagem aos palestinos e ao mundo: o terrorismo compensa”.
Até o fechamento desta edição, na manhã da quinta-feira 23, os Estados Unidos, incansáveis protetores de Israel, permaneciam em silêncio em relação ao anúncio do trio europeu. Quanto à recomendação da promotoria do TPI, o presidente Joe Biden não hesitou em condenar o relatório preliminar do tribunal, apesar da intensa pressão interna, em especial nas universidades norte-americanas, contra o apoio incondicional de Washington ao massacre na Faixa de Gaza. “O que está acontecendo não é genocídio”, declarou na terça-feira 21 o democrata, contra as evidências e sob risco de perder ainda mais popularidade entre os eleitores jovens. Antes, por escrito, havia definido a recomendação como “ultrajante” e rechaçado a equivalência entre Israel e o Hamas. Em novembro, os EUA escolherão o próximo presidente. Segundo as mais recentes pesquisas, Biden está atrás de Donald Trump em cinco dos seis estados decisivos nas eleições. Segundo os analistas, a sustentação militar e política à violência desproporcional das tropas israelenses no enclave palestino tem minado as chances de reeleição do atual presidente, a despeito do bom desempenho da economia. Adendo: Trump é mais radical na defesa de Netanyahu. O republicano, que transferiu a embaixada dos Estados Unidos de Tel-Aviv para Jerusalém, é contra a criação de um Estado palestino e defende a expulsão da população de Gaza para o deserto do Sinai.
Mais de 800 mil palestinos fugiram de Rafah em uma semana, relata a ONU
O relatório de Karim Khan, promotor-chefe do TPI, com o pedido de mandados de prisão contra Netanyahu e equipe e contra os líderes do Hamas por suspeitas de crimes de guerra e crimes contra a humanidade conseguiu um feito inédito nestes oito meses de conflito: uniu as duas partes. Netanyahu recorreu à surrada tática de confundir as críticas ao seu gabinete e às forças armadas com perseguição aos judeus. “Rejeito com repugnância a comparação feita pelo procurador de Haia entre Israel democrático e os assassinos do Hamas. Trata-se de uma completa distorção da realidade”, declarou. “Khan ganhou um lugar entre os grandes antissemitas da história”. O comando do grupo armado palestino, por sua vez, pediu a rejeição do parecer e afirmou que a procuradoria do tribunal “iguala a vítima ao carrasco”.
Para os milhares de palestinos confinados na “ratoeira” de Rafah, na fronteira com o Egito, os anúncios da Noruega, Irlanda e Espanha e o parecer de Khan, embora bem-vindos, não alteram a realidade. As forças israelenses continuam a bombardear o último refúgio na Faixa de Gaza, sob o pretexto de eliminar o Hamas, enquanto Netanyahu ensaia o massacre final. Cerca de 800 mil civis foram forçados a deixar a cidade desde os primeiros ataques de Israel em meados do mês, afirmou Phillipe Lazzarini, chefe da UNRWA, a agência de refugiados das Nações Unidas. Os bombardeios continuam a provocar dezenas de mortes por dia. Foram 83 na segunda-feira 20. “Quando os indivíduos se deslocam, ficam expostos, sem passagem segura ou proteção. Todas as vezes, são obrigados a deixar para trás os poucos pertences: colchões, barracas, utensílios e suprimentos básicos que não podem carregar ou pagar para transportar. Toda vez têm de começar do zero, tudo de novo”, descreve Lazzarini.
A violência desmedida das tropas israelenses tem sido justificada pela brutalidade do Hamas nos ataques em 7 de outubro. Os relatos da barbaridade são chocantes e condenáveis, mas, como de hábito, mentiras de guerra – ou ao menos exageros – têm servido como justificativa para o massacre em Gaza. Uma investigação da agência de notícias Associated Press desmente parte das acusações de abuso sexual cometido por militantes do grupo palestino. As denúncias investigadas pela AP partiram de dois voluntários da Zaka, organização israelense de busca e salvamento. Em resposta aos jornalistas da agência, um desses voluntários, Chaim Otmazgin, negou que tenha sido veemente ao descrever o caso de estupro de uma adolescente no kibutz Be´eri, uma das histórias que respaldou o revide israelense e gerou debates acalorados e censura aos críticos do governo de Netanyahu ao redor do mundo, baseada no argumento de cumplicidade com terroristas. Em 7 de outubro, o Hamas matou 1,2 mil israelenses e fez 240 reféns. O número de mortos da ofensiva israelense passa de 35 mil. Até agora. •
Publicado na edição n° 1312 de CartaCapital, em 29 de maio de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Costas largas’
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