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Corrida de bebês

No próximo ano, a Índia vai ultrapassar a China em número de habitantes, projeta a ONU

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Em meados do século, a população indiana alcançará a marca de 1,6 bilhão de indivíduos - Imagem: Sanjar Hadkar/The Times of India/AFP
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O projeto de população global da ONU anunciou recentemente uma grande mudança na aparência do mundo. No próximo ano, a Índia, e não a China, será o país mais populoso do mundo. Neste momento, a China tem 1,43 bilhão de habitantes, contra 1,41 bilhão da Índia, mas em meados do século haverá mais de 1,6 bilhão de indianos para perto de 1,3 bilhão de chineses.

Em certo nível, esse fato deveria agradar a Pequim, que obrigou os chineses a adotarem a política de filho único durante cerca de 40 anos. Pode haver, no entanto, alguns rostos desconsolados em Pequim. A ideia de a China ser a sociedade mais populosa do mundo há muito está ligada à ascensão do país. Oficialmente, a China descarta qualquer ideia de que seja importante estar no topo dos rankings globais: em janeiro deste ano, o vice-ministro das Relações Exteriores, Le Yucheng, declarou que a nação não tinha interesse em se tornar a maior economia ou superpotência do mundo e, em vez disso, trabalharia para melhorar a vida de sua população.

Há anos, as redes sociais chinesas transbordam de vozes de confronto a exigir que o país seja o “número 1”. A queda para o segundo lugar em população global provavelmente trará uma reflexão sobre essa busca por outro primeiro lugar global. Apesar das negativas de seus líderes, não há dúvida de que a China pretende se tornar a maior economia do mundo e, por algumas medidas, como a paridade do poder de compra, já é. Em termos de PIB nominal, ainda é o “número 2”, atrás dos EUA, mas muitos economistas sugerem que, provavelmente, chegará ao topo no fim da década de 2020 (embora fatores inesperados, como os efeitos econômicos das quarentenas da Covid, possam atrapalhar).

A busca pelo crescimento do PIB faz parte de um projeto maior para liderar os rankings em diversas áreas. Durante as décadas de 1980 e 1990, os formuladores de políticas chineses responderam aos desafios do líder supremo Deng Xiaoping para construir um modelo que se guiasse por um conceito que chamaram de “poder nacional abrangente” (zonghe guoli). Grande parte do movimento começou nas Forças Armadas, com avaliações de armamento e treinamento, mas a atenção rapidamente se voltou para fatores econômicos. Os analistas de Deng classificaram seus recursos existentes, como força de trabalho e recursos materiais e minerais, além de projetar a capacidade futura em áreas como novas tecnologias.

Durante a década de 1990, estudiosos discutiram até que ponto a China havia subido no ranking global. Nos anos 2000, as ambições mudaram: em vez de “poder nacional abrangente”, os analistas chineses começaram a falar em termos de aumentar o soft power chinês – o “poder brando”, ou a capacidade de liderar outros países por meio da persuasão, e não da coerção.

Durante grande parte do período desde 1945, os Estados Unidos foram o ­“número 1” indiscutível nessa área. Apesar dos muitos desastres geopolíticos (Vietnã, Iraque) e de injustiças domésticas (a política racial), a capacidade dos norte-americanos de projetar uma ideia de si próprios ao redor do mundo tem sido – e continua a ser – imensamente forte. Há uma razão pela qual Xi Jinping foi apenas um dos muitos pais chineses que enviaram suas filhas para estudar nos Estados Unidos.

Perder a posição é boa ou má notícia para Pequim?

A China investiu imensos recursos na tentativa de se transformar em uma superpotência de soft power nas últimas duas décadas. O esforço teve algum sucesso, particularmente no Sul global: a ideia da China como um inovador impressionante em tecnologia tomou conta de grande parte da África Subsaariana e da América Latina, onde o fornecimento de 5G barato e eficaz superou os temores sobre segurança. Dramas e novelas chinesas de várias partes tornaram-se populares no Sudeste Asiático e começaram a criar uma audiência em alguns países africanos: no ano passado, usuários de redes sociais no Quênia se tornaram grandes fãs da série de fantasia da tevê chinesa Os Indomáveis. O TikTok, produto da empresa chinesa ByteDance, tem sido um divisor de águas cultural, embora parte de seu sucesso decorra de minimizar seus vínculos com o país de origem.

Até a Índia, geralmente cautelosa com as intenções geopolíticas da China, tem regularmente debates nervosos sobre por que não pode igualar o PIB chinês e o recorde de redução de pobreza. Também não pode igualar o público que a China tem para sua história sobre sua ascensão ao poder global.

Em geral, o desejo da China de se tornar o maior gerador de poder brando estagnou, ainda ficando bem atrás dos EUA. Uma razão é o controle de cima para baixo que molda a política chinesa. Os geradores de soft power mais poderosos da vizinhança da China, como o mangá japonês e a música pop sul-coreana, surgiram quando seus países liberalizaram e desenvolveram uma sociedade civil. A China caminhou exatamente na direção oposta nos últimos anos. Por exemplo, as restrições impostas a Hong Kong sob a lei de segurança nacional chinesa de 2020 aumentaram a censura de filmes, juntamente com avisos de que os museus da cidade devem evitar obras de arte que possam prejudicar uma segurança nacional vagamente definida. Essa mentalidade restritiva é um obstáculo autoimposto ao desejo da China de projetar poder cultural no mundo liberal.

Além disso, o país também emite vibrações confusas sobre quão acessíveis sua própria cultura e sua sociedade realmente são. O governo argumenta que gente de fora não pode criticar sua política porque opera sob um sistema único de “socialismo com características chinesas” que não serviria a nenhum outro Estado, mas também projeta a ideia de “sabedoria chinesa” que pode funcionar como um recurso para o mundo.

O poder brando dos Estados Unidos deriva da ideia de que qualquer um – em teoria – pode tornar-se norte-americano adotando sua cultura e seus valores. A China lutou para fazer uma afirmação semelhante e consistente e, em consequên­cia, prejudicou sua própria narrativa. Apesar de gastar centenas de milhões para aumentar sua posição no ranking mundial de soft power, a China oscila entre o oitavo e o décimo lugares.

Ainda não está claro o que significa para a China ser o “número 1”: o PIB por si só não capta o sentido de aspiração por trás da ideia. Mas, à medida que desliza para o segundo lugar em termos de tamanho populacional, não há dúvida de que seus líderes se empenharão ainda mais para atingir esse objetivo ilusório e mal definido em áreas que ainda sentem que podem controlar. •


*Rana Mitter é professora de História e Política da China Moderna na Universidade de Oxford.
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1219 DE CARTACAPITAL, EM 3 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Corrida de bebês “

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