Mundo

Contra a violência, “cidades” só para mulheres

Projeto nascido em El Salvador cria centros de atendimento feminino em que só mulheres trabalham

Vanda Pignato em evento em uma das unidades do Ciudad Mujer
Apoie Siga-nos no

De San Salvador

Recorde de feminicídios, morte em massa de adolescentes sob o poder do Estado, proibição irrestrita do aborto. Enquanto a cultura da violência de gênero se repete como epidemia pela América Central, espalha-se como contraponto a ideia de uma cidade exclusiva para as mulheres.

Criado em El Salvador, o projeto Ciudad Mujer monta centros focados em temas de interesse feminino que só permitem o ingresso e a atuação de mulheres. O projeto concentra serviços jurídicos, médicos e sociais públicos. A ideia surgiu da invisibilidade experimentada em 2009 pela brasileira Vanda Pignato durante a campanha presidencial de seu então marido, Maurício Funes, que governou o país até 2014.

Ativista dos direitos humanos e hoje ex-mulher de Funes, Pignato é atualmente responsável pela pasta da Inclusão Social no governo do presidente Salvador Sánchez Cerén. Sucessor de Funes, Cerén também integra as fileiras da Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN).

“Tenho uma trajetória política longa, mas naquele período me tornei invisível. Decidi que nos comícios, onde era apresentada como a esposa do Maurício, ficaria entre as invisíveis, que são maioria. Conheci a realidade e percebi que o problema central era o acesso a serviços. Pensei num lugar seguro, onde as políticas fossem articuladas”, afirma Pignato.

Metade das três milhões de salvadorenhas acessaram em algum momento uma das seis sedes do projeto Ciudad Mujer, afirma a secretaria. Um atendimento se tornou símbolo da iniciativa. Uma mulher que não possuía documentos por ter perdido as digitais em função de preparar tortillas desde criança obteve sua identificação em 45 minutos, rompendo 45 anos de exclusão.

Leia mais:
O perigo de ser mulher na América Central
No Dia da Mulher, nada a comemorar

 A estudante Gabriela Fuentes esteve na unidade de Colón, cidade próxima à capital, San Salvador. “Provar dos serviços foi incrível, pois nos acostumamos à negligência dos agentes públicos. Me senti importante”, disse. Espaço para os filhos, capacitação em assuntos de gênero e direitos, acessibilidade e presença de LGBTs promovem a diversidade. A qualificação das relações passa pelas referências a líderes históricas. Na unidade de Santa Ana, no leste do país, está representada Silvia Arriola, enfermeira assassinada pela repressão ao acompanhar o exército da FMLN nos anos 80, época de intensos conflitos entre a guerrilha e a ditadura militar. 

A herança daqueles tempos é especialmente dura para uma geração de mulheres. Durante a década da guerra civil as combatentes tiveram uma falsa sensação de igualdade. Com a pacificação, a partir de 1992, a maioria voltou para as tarefas de casa depois de perder a família, estudo e viver em meio à pobreza ao longo dos sucessivos governos de direita, donos da hegemonia eleitoral por vinte anos. Se o conflito armado terminava, a violência social e doméstica viria a ocupar alarmante espaço na sociedade.

Atualmente, segundo o governo, uma das principais causas de morte das salvadorenhas é o traumatismo craniano. Apenas no primeiro semestre de 2017 registraram-se duzentos feminicídios. Diante deste quadro, a atenção às vítimas de violência constitui forte eixo de enfrentamento com o Judiciário e a polícia, cujas práticas passaram a ser confrontadas por operadoras do direito formadas nas unidades do Ciudad Mujer.

A percepção de que esses órgãos estão comprometidos pela corrupção também contribui para afastar as cidadãs. “Os sistemas opressivos têm a ver com o patriarcado e o neoliberalismo. Neles, as mulheres são seres relativos, isso prejudica o trato que recebemos. A desigualdade é a principal violação”, afirma Silvia Juarez, da Organização Mulheres Salvadorenhas pela Paz.

O programa prevê que, para escapar ao ciclo da humilhação, a mulher deve também ter independência econômica e autonomia financeira, condições difíceis de serem obtidas quando os homens ganham salários 33% a 49% a mais que as mulheres na cidade e no campo, respectivamente. Por isso, as ações são reforçadas em territórios carentes. Na visita da reportagem à sede de Santa Ana, 40 jovens e idosas aprendiam técnicas agrícolas. Foi no projeto que formaram-se as primeiras eletricistas de El Salvador e é lá que se estimula o cooperativismo, as parcerias públicas e o intercâmbio – o Brasil enviou as cozinhas brasileiras do Senai.

A desinformação atrapalhou o projeto nos anos iniciais. Havia boatos de que tratava-se de uma cidade de papel, de um programa para lésbicas e de incentivo ao aborto. Muitas mulheres de fato iam às unidades para interromper a gravidez. Outras mantinham-se afastadas pelo medo da desmoralização.

Liderada pela Aliança Republicana Nacionalista, a direita de El Salvador mostra peso na Assembleia Nacional. Recentemente conseguiu barrar o crédito de 30 milhões de dólares para três novas sedes. Apesar da contenção, duas Ciudad Mujer Joven foram inauguradas em agosto, em Libertad e Sonsonate. “A direita quer afetar o governo sem importar-se com as mulheres. O financiamento exige maioria e temos 35 dentre 84 parlamentares”, critica a deputada Margarita Siguenza, da governista FMLN.

Nesse congresso, formado ineditamente por um terço de mulheres, destacam-se deputadas da FMLN, que definiu paridade de gênero nas listas de candidaturas. A ampliação da participação feminina é tímida no Executivo, no entanto. Há apenas 27 prefeitas em 262 municípios. “Todas as decisões são tomadas pelos homens, mas somos 53% da população e queremos disputar de forma igual. É uma batalha iniciada nas ruas, pois são as anônimas que constroem o poder popular”, avalia Vanda Pignato.

Leia mais:
O feminicídio e a luta contra o machismo na agenda política
A tecnologia no combate à violência contra a mulher

Para a organização Agrupação Cidadã pela Despenalização do Aborto, essa construção do poder feminino passa por reverter a proibição do aborto. Segundo a ONU, três adolescentes ficam grávidas por hora em El Salvador. E o país tem uma das leis de aborto mais restritivas do mundo. A prática é totalmente proibida e a legislação prevê penas duras tanto para quem realiza o procedimento quanto para quem se submete a ele.

Neste ano, a ministra da Saúde, Violeta Menjivar, acenou com a transição de “uma penalização absoluta para uma despenalização pontual”, mas o projeto não evolui no Legislativo.

Ciudad Mujer Mulheres durante atividade na unidade de Santa Ana do Ciudad Mujer (Foto: Igor Veloso)Força da maioria

Na região que consagrou o termo machismo, definido pelas feministas latinoamericanas da década de 1970, o Ciudad Mujer caminha para tornar-se referência. A senadora e ex-presidenta argentina, Cristina Kirchner, e a presidenta chilena, Michele Bachelet, manifestaram interesse pela experiência, já estabelecida na República Dominicana, Paraguai, México, Bolívia e Honduras. “As mulheres passam por mais obstáculos que os homens. Ciudad Mujer é um modelo de igualdade e paz que deveria ser aplicado regionalmente como política de Estado”, defende Vanda Pignato. Ela própria já apresentou a iniciativa a lideranças como Michelle Obama, ex-primeira-dama dos Estados Unidos, e o ex-presidente Lula.

No Brasil, a Casa da Mulher Brasileira, concebida na gestão da presidenta Dilma Rousseff para ser instalada nos 27 estados, dialoga com a perspectiva salvadorenha ao desenhar equipamentos multidisciplinares. A oposição a Michel Temer vê uma perda de fôlego na defesa das mulheres em seu governo. “Lula e Dilma estabeleceram políticas de emancipação da mulher, por isso o Bolsa Família, Minha Casa Minha Vida, acesso a crédito e à posse da terra, a lei do feminicídio, a garantia trabalhista às domésticas, as possibilidades de qualificação voltavam-se à igualdade de gênero. A situação agora é outra, como se os homens dissessem que o poder não nos pertence. Há um estreitamento de possibilidades”, observa a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), que foi ministra de Direitos Humanos de Dilma.

Segundo a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, ligada à Presidência da República, a iniciativa está mantida. “O programa está em andamento com a entrega prevista para 2017 de três unidades: Boa Vista, Fortaleza e São Luís. São Paulo está 95% concluída”, afirma o órgão. Recentemente, no entanto, a Casa da Mulher Brasileira de São Paulo foi ocupada por um grupo de mulheres para denunciar o não funcionamento da estrutura.

ENTENDA MAIS SOBRE: , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo