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Contestar a realidade tornou-se hábito entre líderes mundiais

A propensão a negar, evitar ou desmentir as consequências de atos políticos tem se espalhado pelo globo como um vírus tóxico

O presidente americano Donald Trump
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“Verdade ou consequência”, um jogo de salão em que os jogadores são punidos por serem desonestos ou agirem mal, é geralmente divertido, mas reflete um amplo consenso moral sobre a inaceitabilidade da mentira. Essa antiga crença está profundamente enraizada na cultura popular. Truth or Consequences foi o título de um programa de tevê de perguntas e respostas nos Estados Unidos após a Guerra. Ele fez tamanho sucesso que uma cidade no estado do Novo México foi batizada com esse nome. Colocado de forma simples, e como regra geral, a maioria espera que, se você disser mentiras, será punido.

Por que, então, tantos líderes modernos parecem pensar que podem mentir e se safar sem problemas? A propensão a negar, evitar ou desmentir as consequências de atos políticos tem se espalhado globalmente como um vírus tóxico. Houve uma época, como afirma David Miliband, o ex-secretário das Relações Exteriores do Reino Unido, na Palestra Fulbright deste ano, em que a prestação de contas públicas estava em ascensão. Não mais. No que ele chama de era da impunidade, “os envolvidos em conflitos em todo o mundo acreditam que podem se safar com qualquer coisa, inclusive assassinato”.

A propensão a negar, evitar ou desmentir as consequências de atos políticos tem se espalhado pelo globo como um vírus tóxico

Nos últimos tempos tivemos exemplos claros de como os líderes mentem – cinicamente, desavergonhadamente e rotineiramente. Depois de um inquérito meticuloso, investigadores internacionais anunciaram que três russos e um ucraniano enfrentarão acusações de assassinato por um ataque de míssil terra-ar no leste da Ucrânia em 2014, que derrubou o voo MH17 da Malaysian Airlines, matando 298 passageiros.

O príncipe Bin Salman não explica o assassinato de Khashoggi. Putin nega participação no ataque a um avião da Malaysian Airlines/ Foto:Yuri KADOBNOV / AFP

A evidência que liga esses indivíduos ao governo de Vladimir Putin é avassaladora, com base em depoimentos de testemunhas, imagens de satélite e telefonemas para Moscou interceptados. O lançador de mísseis Buk usado no ataque foi levado de sua base em Kursk à Ucrânia e de volta. Os três russos trabalhavam no aparelho de segurança de seu país. Pode-se apostar sem temor que eles não agiram por conta própria.

Entretanto, as negativas do Kremlin são muitas e rápidas. A Rússia não teve participação, afirma o governo. Não havia pessoal militar na Ucrânia e “não teve oportunidade” de participar da investigação. Em outras palavras, a Rússia é acusada injustamente. Por qualquer medida factual razoável, esses protestos são demonstrável e ridiculamente falsos. Mas, ao desprezar a necessidade de justiça das vítimas e suas famílias, as mentiras de Moscou não param.

Se uma grande potência mundial pode se comportar dessa forma, por que não os líderes menores? A Arábia Saudita também travou uma guerra à verdade, de cara limpa, depois que um investigador da ONU envolveu Mohammed bin Salman, o príncipe herdeiro saudita, no assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, em outubro passado. Desde que esse escândalo irrompeu, a defesa preferida do reino árabe foi a dissimulação, e não a decência.

Foto: FETHI BELAID / AFP

As negativas e explicações de Riad, proferidas nos dias após o desaparecimento de Khashoggi no consulado saudita em Istambul, foram rapidamente denunciadas como fabricações. Imperturbável, um ministro graduado mais uma vez rejeitou redondamente a “evidência crível” da cumplicidade do príncipe. Sua conclusão de que o assassinato foi “uma execução extrajudicial pela qual o Estado da Arábia Saudita é responsável sob a lei internacional” foi descartada como “nenhuma novidade”.

Basta simplesmente dizer que alguma coisa não é, mesmo quando todo mundo sabe (ou suspeita fortemente) que é? Perguntemos a Donald Trump, um mentiroso serial e importante autoridade em fake news. O presidente norte-americano lançou sua campanha à reeleição em 2020 na Flórida. Mas estejam atentos. Qualquer coisa que ele disser deve ser ouvida com um grande pé atrás. Segundo os rastreadores de mentiras da Casa Branca, ele fez 10.796 declarações falsas ou enganosas desde que assumiu o cargo.

O total de sujeiras de Trump aumentou de forma acentuada em Orlando. Ele mentiu sobre o relatório de Mueller (que não o isentou) e sobre “o maior corte de impostos da história” (que não foi). Ele disse que “estamos começando a retirar muitos soldados” do Oriente Médio, enquanto mobilizou mais mil para assustar o Irã. Ele se gabou do “muro” na fronteira com o México, que na maior parte não existe. De fato, Trump juraria que a rainha da Inglaterra é sua amiga íntima se isso o ajudasse a conseguir votos. Na verdade, ele jurou.

Os fãs de Trump parecem não se importar que seu herói não seja confiável. E muitos outros países estão igualmente infectados pelo vírus da mentira. Na China, a mídia estatal afirmou ousadamente que os manifestos de rua em Hong Kong são uma conspiração estrangeira. No Egito, o regime nega descaradamente que o cruel tratamento dado ao presidente deposto, Mohamed Morsi, tenha causado sua morte sob custódia. Na Grã-Bretanha, os candidatos conservadores a primeiro-ministro mentem sem parar e, em um caso de destaque, mentem feio.

Qual é a probabilidade de que os governos ou políticos citados acima sejam punidos, por desonestidade, nos tribunais ou em outros lugares? Os cidadãos sauditas, russos e chineses não têm muito remédio quando seus governantes ocultam ou distorcem a verdade. Moscou não permite a extradição dos suspeitos do voo MH17. E quem acredita que um príncipe saudita possa ser obrigado a responder por seus atos? Mas a busca por verdade ou castigo não pode ser simplesmente abandonada.

A promotora-chefe do Tribunal Penal Internacional pediu ao Conselho de Segurança da ONU para usar a atual rebelião no Sudão para ajudá-la a finalmente colocar na prisão os perpetradores do genocídio de Darfur. Eles estão fora de seu alcance há 14 anos. “Esta é a hora de agir. As vítimas de Darfur esperaram demais para ver a justiça cumprida”, disse Fatou Bensouda.

Há poucos indícios de que seu pedido será atendido, seja pelos novos governantes militares do Sudão, seja pelas grandes potências. Isso não pode continuar. Os que podem devem falar claramente – e verdadeiramente – ou ser cúmplices em um mundo de mentiras.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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