Mundo

Compostela, ora pois! Caminho português é mais curto e aceita pausas

A tradição dos andarilhos vem de séculos. Mas o boom surge com o turismo de massa

Chegada ao destino: outras recompensas, além da espiritual. Foto: Istockphoto
Apoie Siga-nos no

Os peregrinos amontoavam-se às portas da hoje chamuscada Catedral de Notre-Dame, maltrapilhos, às vezes adoentados, na expectativa de uma partida que era, à época, um projeto para a vida, quase um exílio. A comitiva enveredava por uma ruela em direção ao sul, hoje convenientemente chamada Rue Saint Jacques (São Tiago). Os primeiros passos de oração já começavam ali, augurando sorte na piedosa trajetória. A Via Láctea servia de referência.

Paris não era o único ponto de partida, na França, para Santiago de Compostela. Crônicas devotas dos séculos XI e XII comprovam que romeiros também botavam o pé na estrada desde Lyon, às margens do Rhône, e, mais ao sul, desde Le Puy. Quase invariavelmente as rotas convergiam para Roncevalles e, de lá, já em território dos monarcas ibéricos, para Pamplona. Daí, o altiplano cantábrico e a planície asturiana guiavam a caminhada beata rumo ao santuário do mártir da Cristandade, na Galícia.

São Tiago, apóstolo de Cristo, foi decapitado em Jerusalém, no ano 44, por ordem de Herodes Agripa, mas acredita-se que antes disso tenha peregrinado por terras da Hispânia romana pregando a nova fé. Por tal motivo é que seus discípulos decidiram preservar-lhe o corpo em bálsamo e despachá-lo, por barco, para as remotas paragens onde tinha pregado. O barco teria naufragado nas costas da Galícia e o corpo do mártir mergulhou no mar, para flutuar logo, logo de volta à superfície, acolitado reverentemente por centenas de conchas de vieiras – a especialidade gastronômica daqueles mares.

As conchas de vieiras (em francês, não por acaso, coquilles Saint-Jacques) viraram símbolo da romaria, balizando as trilhas, e o apóstolo ganhou túmulo e santuário dignos de quem iria se converter no padroeiro de todos os povos de Espanha, insuflando o fervor patriótico naquele guerreiro momento da Reconquista contra os mouros.

Todos os caminhos levam a Compostela, muitos deles, sempre levaram, desde a Idade Média, mas o boom de fé mística coincide com um evento comercial do fim do século XX: o turismo de massa. Até os anos 70 e 80, os devotos devidamente certificados do caminho de Santiago não chegavam a 3 mil por ano. Hoje em dia, podem chegar a centenas de milhares. Paulo Diário de um Mago Coelho há de requerer crédito por isso.

Embora relatos de viagens falem de peregrinações seculares, Portugal somente acordou para o potencial turístico da vizinha Compostela há poucas décadas. Afinal, que perdoem os espanhóis, a Galícia, por simetria geográfica e afinidade cultural, devia ser território lusíada.

Demarcaram-se minuciosamente as rotas. A variedade de paisagens – serras, parques, planícies – distrai o caminhante. E, do ponto de vista da quilometragem, a Rota Principal é quase um atalho. Em 20 e poucos dias, pode ser concluído um percurso que o tradicional caminho espanhol demanda mais de mês.

No meio das rotas portuguesas, veredas, parques, serras, vales – e toda a história do país. Aqui, Águeda dos guarda-sóis coloridos. Foto: Istockphoto

Portugal aproveita para propor, à margem da contrição religiosa, um passeio por sua história. Umas das primeiras escalas, a 141,5 quilômetros de Lisboa, é a antiga cidadela templária de Tomar. Enquanto a lendária Ordem dos Cavaleiros de Cristo era massacrada, por heresia, Europa adentro, os templários resguardavam-se no reino da dinastia dos Borgonha. O grandiloquente Convento de Cristo convida a uma visita ao oratório privativo dos cavaleiros.

De Tomar a Coimbra, de igrejinhas seculares é que o romeiro não há de se queixar, enfileiradas em vilarejos de charmosa simplicidade. Na Coimbra de inúmeros sítios religiosos é heresia não conhecer a bela Capela de São Miguel, situada no campus daquela que é uma das mais antigas universidades do mundo, de 1290. A Biblioteca Joanina, de índole barroca, ao lado, merece também uma espiada.

As trilhas minuciosamente demarcadas dispensam guia. Na Idade Média, a Via Láctea indicava o caminho – tema de um filme profano e devasso de Luis Buñuel. Foto: Istockphoto

Em Coimbra, o caminho português bifurca-se em dois, um deles mais curto, mais próximo do litoral, rumo ao Porto, e o outro pelo interior, mais longo e mais espinhoso, a cobrar a travessia do sopé da Serra da Estrela e dos contrafortes pedregosos de Trás-os-Montes.

A ascese devocional da marcha não pode resultar em punição ao corpo e nesse quesito os portugueses são magnânimos. Para quem toma a trilha para o Porto, a 23 quilômetros de Coimbra alcança-se a cidade de Mealhada. Sua fama vem do leitão à Bairrada, servido em nacos pantagruélicos e deixado no forno por tantos dias que a carne pode ser cortada a colher. Não é uma pequena concessão à gula que deverá empanar a motivação beatífica da viagem. 

No caminho luso, fé não implica em punição. Tem os vinhos, a comida…

A chegada ao Porto, cidade mágica, aviva também o consolo reparador do vinho que tem o nome da cidade, ótimo para restaurar as energias despendidas no trajeto, e, a menos que o peregrino seja membro de uma Liga de Temperança, a ele se dá o direito de compensar o sacrifício, aqui e ali, pelo cálice de um Douro, de um Dão, de um vinho verde do Minho – os terroirs que ficam no caminho.

As derradeiras etapas do acesso português são, numa ponta, Valença e, na outra, Bragança, cujo castelo majestoso testemunha, em silêncio, a epopeia milenar da independência de Portugal.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar