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Como criar mártires
A estratégia de Israel em Gaza tende a amplificar a “mitologia” em torno do Hamas


No fim de 1935, um pequeno grupo de milicianos comandados por um religioso islâmico nascido na Síria lançou uma campanha de guerrilha contra o governo britânico ocupante, que tinha entre seus objetivos a fundação de um “lar nacional” judaico no que era então a Palestina predominantemente árabe. A campanha foi rapidamente suprimida pelas forças britânicas, e seu líder, Izz as-Din al-Qassam, morto, assim como a maioria de seus homens.
A atitude de Qassam de pegar em armas e morrer a serviço da causa palestina causou, no entanto, uma impressão profunda e duradoura na sociedade palestina, e seu “martírio” tornou-se um símbolo de sacrifício que continuou a reverberar nos últimos 90 anos e acabou por inspirar o nome para a ala armada do Hamas no fim dos anos 1980. O fato de Qassam ter fracassado era essencialmente irrelevante. Mais importante foi sua personificação do espírito de resistência resoluta e altruísta ao domínio estrangeiro, apesar do desequilíbrio de poder e da tênue perspectiva de sucesso. Qassam também colocou o movimento nacionalista palestino no rumo da “luta armada”, mais tarde adotada pelo movimento da “corrente dominante” de Yasser Arafat, o Fatah, a partir do fim dos anos 1950, mas cujo papel diminuiu desde os acordos de Oslo com Israel em 1993.
Os últimos 30 anos testemunharam uma concorrência acelerada entre a reivindicação do Hamas de personificar a resistência nacional ao domínio de Israel e o colapso da Fatah na discórdia, corrupção e colusão, sob a bandeira da “cooperação de segurança” da Autoridade Palestina com a ocupação israelense. Essa corrida terminou no ataque do Hamas em 7 de outubro, destinado tanto a chocar e aterrorizar Israel quanto a desacreditar a Autoridade Palestina de Mahmoud Abbas e do Fatah, e consolidar a posição do Hamas como principal herdeiro e personificação do movimento nacional palestino e sua causa libertária.
O recurso de Israel após o 7 de outubro à força maciça, despejando um número sem precedentes de cerca de 30 mil bombas até meados de dezembro de 2023, o equivalente a duas bombas nucleares de Hiroshima, até agora falhou em erradicar a força militar estabelecida pelo Hamas em meio ao banho de sangue (25 mil palestinos mortos e 62 mil feridos) e o deslocamento em massa de 1,9 milhão de civis palestinos em Gaza, 85% da população, superando facilmente as baixas da limpeza étnica que acompanhou a fundação de Israel em 1948.
A questão de como e quando a guerra terminará permanece envolta na neblina das intenções opacas de Israel e das manobras diplomáticas cada vez mais desesperadas dos Estados Unidos, esperando uma clara vitória de Israel contra o Hamas, enquanto temem as piores consequências de uma conflagração regional como algo evidente após a lenta disseminação das hostilidades de Bab-el-Mandeb a Irbil. A esperança dos EUA de alavancar o momento em um Oriente Médio redesenhado, vivendo em paz e harmonia, deve não apenas enfrentar o mero contágio do atual conflito, como o capital político necessário, especialmente em um ano eleitoral, de mudar Israel de sua atual recusa a qualquer mudança substancial no status quo da ocupação, assentamentos e dominação.
Enquanto isso, os cenários do “dia seguinte” acumulam-se, variando da visão utópica de uma região na direção da paz e estabilidade graças a um “caminho para o Estado palestino” ainda invisível sonhado pelo secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, à fantasia do ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, de um consórcio árabe internacional no comando da Faixa de Gaza em nome de Israel, à promessa do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de que não haverá Estado palestino e que a guerra continuará ao menos até 2025. Em todos eles, falta uma coisa: a provável sobrevivência do Hamas e sua influência potencialmente crescente, apesar e por causa dos enormes danos infligidos ao movimento em si e à população da Faixa de Gaza.
As táticas brutais do Hamas no ataque de 7 de outubro foram apagadas da consciência política palestina pela subsequente eliminação indiscriminada e maciça de civis palestinos, e pela cumplicidade dos Estados Unidos e do Ocidente em apoiar, armar e permitir que esse ataque continuasse sob o disfarce do legítimo direito de Israel à autodefesa, sem uma data de validade definida. Em vez de esmagar o Hamas, seu efeito mais provável será remitologizar a noção de resistência e lançar a semente de futuras iterações que podem ser inspiradas pelo Hamas, mas não têm conexão necessária com sua história, ideologia ou estrutura organizacional.
O histórico da ocupação mostra que o recurso à força bruta nunca abriu espaço para a paz e a segurança
Com os líderes israelenses a falar abertamente em prosseguir a guerra contra o Hamas e seus líderes além das fronteiras nacionais, outra virada potencialmente perigosa poderia assumir a forma da transformação do Hamas de um movimento nacional-religioso centrado no conflito nas terras de Israel e Palestina em um movimento mais global, pronto para levar a guerra a arenas que o Hamas até agora evitou.
No que diz respeito ao restabelecimento de uma autoridade política viável na Faixa de Gaza e à reconstituição de um órgão representativo palestino capaz de tomar e sustentar decisões, quer relacionadas a um futuro horizonte político com Israel, quer com qualquer processo legítimo de governança e reconstrução, a verdadeira questão é como incorporar o Hamas e seu “espírito de resistência” numa nova Autoridade Palestina, em vez de como reprimi-lo ou extirpá-lo. Em tal autoridade ou associado a ela, o Hamas poderia ser parte da solução. Fora, permaneceria tanto uma barreira quanto um polo oposto de atração.
Netanyahu e outras autoridades israelenses deixaram claro que tentarão impor um regime de segurança rígido e indefinido, determinado por Israel, sobre a Faixa de Gaza num futuro próximo. Em outras palavras, reinstituir o que representa uma ocupação em longo prazo. Isto, por sua vez, não só manterá viva a chama do Hamas e galvanizará a resistência inspirada pelo grupo, mas garantirá que o “direito à autodefesa” de Israel apenas produza a própria insegurança que Israel e seus aliados afirmam combater. Se os últimos 55 anos de ocupação nos ensinaram alguma coisa, é que esse não pode ser o caminho para uma paz genuína e duradoura.
Israel e os Estados Unidos demoraram, aproximadamente, 35 anos para dialogar com o que era então visto como a OLP terrorista, assim como levaram anos para que o CNA sul-africano e o IRA irlandês fossem reconhecidos como parceiros em uma solução. Todos os ameaçados ou legitimamente preocupados com o que poderá acontecer agora simplesmente não podem arcar com o preço de esperar tanto tempo. •
*Escritor e ex-negociador palestino.
Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1295 de CartaCapital, em 31 de janeiro de 2024.
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