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Como a CIA opera na América Latina
Governo Trump autoriza ações do serviço secreto americano na Venezuela. Operações do tipo não são algo novo, o que muda desta vez é o anúncio sobre a intervenção, dizem especialistas


O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, autorizou a CIA a realizar operações letais na Venezuela. A notícia foi divulgada pelo jornal The New York Times e confirmada na quarta-feira 15 pelo próprio Trump no Salão Oval, durante uma coletiva de imprensa. Ele alegou dois motivos: tráfico de drogas e imigração ilegal proveniente da Venezuela, país que ele acusou de estar “esvaziando suas prisões” nos EUA.
Jornalistas também questionaram Trump se ele havia dado sinal verde ao serviço secreto americano para “eliminar” o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, por quem o Departamento de Justiça oferece uma generosa recompensa desde agosto. “É ridículo me fazer essa pergunta… Na verdade, não é uma pergunta ridícula, mas não seria ridículo eu respondê-la?”, desconversou.
A resposta venezuelana não demorou a chegar. Primeiro, na forma de um comunicado do Ministério do Exterior e, depois, pela boca do próprio Maduro, que em um discurso inflamado fez um apelo à compreensão, mas rejeitou qualquer intervenção. “Não aos golpes de Estado dados pela CIA”, clamou. “A América Latina não os quer, não precisa deles e os repudia”, acrescentou, citando os casos da Argentina e do Chile.
Além das ações da CIA, os Estados Unidos têm atacado embarcações perto da costa venezuelana, alegando que os barcos estariam transportando drogas. Nesta quinta-feira, o quinto barco foi alvejado. As operações americanas já teriam matado 27 cidadãos da Venezuela, Colômbia e Trindade e Tobago.
A mãe de uma das alegadas vítimas afirmou que o filho, Chad Joseph, de 26 anos, era apenas um pescador que regressava para a casa após três meses na Venezuela.
No Congresso americano, os democratas alegam que os ataques violam o direito americano e a legislação internacional e alguns congressistas republicanos têm procurado mais informações junto da Casa Branca. O governo Trump, porém, não apresentou provas de que os barcos alvejados na série de ataques transportavam, de fato, drogas.
Golpes de Estado e a CIA
“Os Estados Unidos criaram uma rede de informações na América Latina a partir da Segunda Guerra Mundial com os OSS [sigla em inglês para Escritórios de Serviços Estratégicos], que mais tarde se transformaria na CIA”, explica o historiador Lorenzo Delgado. Washington já tinha, na época, um vasto histórico de intervencionismo militar na América Latina. E continuaria depois, com a participação em vários golpes de Estado, como os citados por Maduro. A lista é longa.
E qual foi o papel da CIA nesses golpes? “Pela própria definição desse tipo de serviço, é complicado saber com certeza”, pontua Delgado.
“Pra começar, a primeira grande intervenção da CIA na América Latina foi na Guatemala contra o governo de Jacobo Arbenz [em 1954]”, lembra Arturo López Zapico, professor de História Contemporânea. Depois vieram a República Dominicana (1961), com a rebelião militar que pôs fim à ditadura de Rafael Trujillo, o golpe de Estado no Brasil contra João Goulart (1964) e, no Panamá, a invasão para capturar Manuel Noriega (1990).
Há mais casos documentados, como os da Bolívia e da Argentina. O caso do Chile é um dos mais citados “porque temos muitas fontes para seu estudo”, explica López Zapico, que também lembra intervenções fracassadas como a invasão da Baía dos Porcos em Cuba, os planos para matar Fidel Castro e o apoio ao grupo paramilitar anticomunista Contras na Nicarágua.
“A CIA não é todo-poderosa, nem esse tipo de operação tem como objetivo gerar um caos total no país, mas sim buscar ‘soluções’ para substituir governos que não são, digamos, favoráveis aos Estados Unidos ou aos seus interesses”, acrescenta o historiador.
Delgado concorda. “Então, o que eles fazem é manter uma rede de pessoas que estão em sintonia com os Estados Unidos ou que buscam o apoio americano para se instalar no poder”, explica. “Parte da influência que a CIA pode ter nesse tipo de movimento vem desses contatos”, acrescenta.
Um dos exemplos desse vínculo foi a Operação Condor – uma campanha de repressão política e terror executada pelas ditaduras de direita da América Latina com o apoio americano. A operação envolveu operações de inteligência e assassinato de opositores políticos.
Embora o local mais conhecido para estabelecer essas conexões tenha sido a Escola das Américas, uma academia militar americana no Panamá pela qual passaram a maioria das elites militares do continente, havia muitos outros mecanismos. Como a vendas de armamento, acompanhada por cursos de treinamento específicos e assessoria militar. “Não se trata apenas de vender essas armas, mas de buscar laços de amizade, afinidade, camaradagem e colaboração no futuro”, explica Delgado.
Combate ao narcotráfico ou interesse econômico?
O pesquisador mexicano Carlos Pérez Ricart, do Centro de Investigação e Ensino Econômico, lembra que a CIA é um dos vários instrumentos da política externa dos Estados Unidos. “Neste momento, parece muito claro que seu objetivo é derrubar o governo de Nicolás Maduro, com ou sem razão”, acrescenta.
Faria parte da estratégia americana associar Maduro ao narcotráfico. “Não é que não haja alguma verdade nisso, o regime tem zonas muito obscuras, mas essas são representações bastante vulgares de uma realidade muito mais complexa, como é o tráfico de drogas na região”, afirma Ricart.
Para López Zapico, tanto no caso da Venezuela como em muitas das intervenções da CIA na América Latina, havia claros interesses econômicos por trás. Na Guatemala, a intervenção foi feita para “salvaguardar os interesses da United Fruit Company”, aponta. No Chile, também estavam em jogo os investimentos da General Motors, que teve que deixar de operar com Salvador Allende. No caso da Venezuela, sem dúvida, os interesses petrolíferos estão em jogo, avalia o especialista.
Intervencionismo “mais claro”
“A CIA, como agência de inteligência, opera na Venezuela e na América Latina há décadas, operará no futuro e está operando agora”, diz Pérez Ricart, para quem as declarações de Trump não trazem novidade. “Não há nada de novo do ponto de vista operacional e, se há, não sabemos”, acrescenta.
As únicas coisas que mudaram foram a retórica e a forma de falar sobre o assunto, para um “intervencionismo muito mais claro” e sem rodeios.
Por exemplo, antes do golpe de Estado no Chile, em 1973, o então secretário de Estado americano, Henry Kissinger (que receberia nesse mesmo ano o Prêmio Nobel da Paz pelo cessar-fogo na Guerra do Vietnã), garantiu a Augusto Pinochet o apoio dos Estados Unidos. No entanto, ele o advertiu que, em público, o então presidente, Richard Nixon, teria que expressar condenação ao golpe.
López Zapico atribui o estilo de Trump à falta de assessores tradicionais do presidente. “O que é novo é a falta de formalismo”, concorda Pérez Ricart. “E reconhecer publicamente a participação da CIA na Venezuela também prejudica seus objetivos gerais”, acredita.
“Fazer isso uma semana depois de darem o Prêmio Nobel a María Corina Machado acho que ofusca essa concessão, que pode ser vista no plano mais geral de uma lógica dos Estados Unidos de intervir na região”, conclui.
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