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Comando de caça

Extrema-direita usa o assassinato de Charlie Kirk para açular a base contra os adversários e justificar o autoritarismo

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Oportunidade. A morte do extremista Kirk deu a Trump uma desculpa para enviar a guarda nacional e solapar a autonomia de cidades e estados – Imagem: Gage Skidmore e Robyn Beck/AFP
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Diante da hostilidade crescente e das inúmeras amea­ças de caça às bruxas a democratas e liberais, muita gente se pergunta se o assassinato do extremista de direita Charlie Kirk na quarta-feira 10 terá o mesmo efeito da morte do arquiduque Francisco Ferdinando em junho de 1914. O atentado que tirou a vida do então herdeiro do trono austro-húngaro serviu de estopim para a Primeira Guerra Mundial. Será Kirk o mártir que os trumpistas procuravam para iniciar um conflito interno nos Estados Unidos? Exagero? No mesmo dia do assassinato, Donald Trump afirmou que a “esquerda radical tem comparado americanos maravilhosos como Charlie a nazistas e aos piores assassinos em massa e criminosos do mundo” e que “esse tipo de retórica é diretamente responsável pelo terrorismo” no país. Militantes do Make America Great Again passaram a compartilhar freneticamente a hashtag “Guerra Civil”. Na plataforma digital X, antigo Twitter, o grupo Oath Keepers sugeriu a jovens reacionários fãs de Kirk que formassem “grupos armados protetores da ordem americana”. Em outras palavras, milícias. Na mesma rede, Christopher ­Worrell, o líder do Proud Boy condenado a dez anos de prisão pela invasão do Capitólio, mas anistiado por Trump, berrou em caixa alta: “O ASSASSINATO POLÍTICO (de Kirk) DEVE SER RETRIBUÍDO!” O cabeça da Rede Nacionalista, Ryan Sanchez, não ficou atrás. “A esquerda precisa ser destruída de uma vez por todas!”, tuitou. “HOMEM BRANCO REVIDE!”

Para o pesquisador da universidade George Washington, Jon Lewis, o ambiente digital da extrema-direita norte-americana aproveita a “oportunidade” para desumanizar os oponentes e colocar um alvo nas costas dos adversários. “A distorção dos fatos e a fabricação de versões da realidade ganham força nas redes no calor da tragédia. Mesmo figuras proeminentes da administração Trump, grandes influenciadores, gente com muitos seguidores, criam e compartilham fake news.” Trata-se, prossegue Lewis, da estruturação deliberada de um “mito fascista”, com a tentativa de transformar Kirk em ícone absoluto. “Há um esforço muito claro e superexplícito para transformar alguém como Charlie Kirk em símbolo desse movimento fascista que eles estão criando. Isso é completamente insano.”

Querem criar um “mito fascista”, diz o professor Jon Lewis

Tudo é calculado. As verdadeiras operações discursivas online, afirma o pesquisador, servem como gatilho para a adoção de medidas de exceção. “Depois, isso se torna justificativa para um monte de arbitrariedades, como enviar a Guarda Nacional para as ruas, designar certos grupos como terroristas, e usar todo o poder do Executivo para implementar medidas provavelmente inconstitucionais, usando esse tipo de mártir para legitimar as ações.” Segundo Lewis, a estratégia corrobora as pautas racistas, xenofóbicas, anti-imigrantes e antitrans e se vale de episódios como o assassinato de Kirk para mobilizar os apoiadores. “Eles amplificam exemplos escolhidos como ‘o problema’ e empurram para sua base. Cobre-se exaustivamente o homem negro que matou a refugiada ucraniana, Iryna ­Zarutska, na ­Carolina do Norte, mas não há quase nada sobre o atirador neonazista numa escola no Colorado que cometeu crimes no mesmo dia. E então usam esse exemplo como prova positiva da própria ficção, como combustível para empurrar cada vez mais adiante pautas racistas, xenofóbicas, anti-imigrantes e antitrans.”

Não tardou. A morte do cofundador da Turning Point USA catapultou o envio da Guarda Nacional e de agentes federais para várias cidades governadas por democratas. Trump passou a assinar ordens executivas para endurecer as medidas punitivas contra “desordens” civis e protestos, prometendo que essas ações seriam eficazes para restaurar a normalidade e reduzir a criminalidade. O republicano havia deixado clara a sua intenção de replicar em outras localidades o modelo de intervenção federal adotado desde o início de agosto na capital Washington­. Na segunda-feira 15, o presidente dos EUA assinou um memorando no qual autoriza o envio de agentes federais para Memphis, no Tennessee. Não por coincidência, os prefeitos das duas cidades – Muriel Bowser (DC) e Paul Young (Memphis) – são negros. “O esforço incluirá a Guarda Nacional, bem como o FBI, a polícia de imigração (ICE), Investigações de Segurança Interna e os US Marshals”, declarou a jornalistas durante encontro no Salão Oval. O objetivo, ressaltou Trump, é fazer o mesmo em ­Chicago, New ­Orleans, ­Nova York, São Francisco e St. Louis.

Reação. Os protestos contra Trump se espalham pelo país, enquanto a Casa Branca ameaça classificar organizações independentes como terroristas domésticos – Imagem: Kamil Krzaczynski/AFP

A oposição democrata denunciou o arbítrio. Bowser classificou a federalização da polícia da capital como “uma medida autoritária e sem precedentes que não resolve os problemas reais da criminalidade”. Young expressou preocupação por não ter sido consultado antes do anúncio e ressaltou que “a presença militar não é a solução para os desafios de segurança da cidade”. O governador de Illinois, J.B. Pritzker, também criticou as ameaças de Trump de assumir o controle federal da polícia em Chicago, chamando a tática de uma tentativa perigosa de desgastar o Estado de Direito e a autonomia estadual­. “Não precisamos nem queremos você aqui, Donald”, retrucou Pritzker. Em 29 de agosto, governadores de 19 estados liderados pelo Partido Democrata emitiram declaração conjunta na qual chamam as iniciativas sem o consentimento dos gestores locais de ingerência política e “um abuso de poder alarmante, ineficaz, e que mina a missão das Forças Armadas estaduais”.

A tragédia de Kirk tem sido usada ainda como pretexto para a escalada autoritária e a radicalização em outros setores. Na quinta-feira 11, a Universidade de Berkeley, na Califórnia, não resistiu ao assédio da Casa Branca e forneceu os nomes de cerca de 160 estudantes, professores e funcionários como parte de uma investigação federal sobre supostos incidentes de antissemitismo no campus, especialmente em meio a protestos pró-Palestina que ocorreram nas instituições acadêmicas. O neo-marcathismo não poupou nem celebridades como a filósofa Judith Butler, de origem judia. Sinal do tempo, o radicalismo trumpista, alinhado ao governo genocida de Benjamin Netanyahu (ver reportagem à página 40), inventou a figura do judeu antissemita.

O uso da Guarda Nacional amplia o arbítrio da Casa Branca

O comando de caça não vê fronteiras para a sua cruzada. A administração Trump anunciou planos para revogar vistos de quem tenha comentado ou comemorado o assassinato de Kirk. Na segunda-feira 15, a colunista do ­Washington Post, Karen Attiah (outra negra) anunciou que o jornal a havia demitido por conta de manifestações “contra a violência política, os padrões raciais dúbios e a apatia dos Estados Unidos em relação às armas”. “Isto vem na sequência de um esforço nacional dos republicanos, que afirmam adorar a ‘liberdade de expressão’, para catalogar e ser despedido qualquer um e todos que criticaram Charlie Kirk ou falaram desrespeitosamente sobre ele. A hipocrisia deles é inacreditável.” O erro de Attiah? Ter reproduzido frases do ativista morto, notório por defender a posse de armas, minimizar o estupro – ele afirmou que obrigaria a filha de 10 anos a gestar um bebê, caso fosse violentada e engravidasse – e exaltar o período da escravidão.

Na terça-feira 16, o vice-presidente JD Vance prometeu desmantelar “instituições de esquerda” que, segundo ele, promovem a violência e o terrorismo. Vance atacou duas das mais importantes fundações liberais do país, a Open Society, bancada pelo financista ­George Soros, e a Ford, de inegável contribuição à política de intervencionismo externo dos EUA ao longo do século XX. Em comunicado à imprensa, a Casa Branca foi mais longe e revelou o intento de preparar uma lista de “organizações de esquerda ligadas à violência política” e de classificar grupos liberais como organizações terroristas domésticas. O governo Trump parece decidido a tirar a poeira dos manuais clássicos do nazismo. A caça às bruxas costuma, porém, provocar reações. Segundo a última pesquisa a respeito, de 2022, cerca de 40% dos norte-americanos temiam uma guerra civil, dado o clima de divisão interna. Na Secessão, entre 1861 e 1865, morreram 750 mil militares e civis, 2% da população estimada à época. •

Publicado na edição n° 1380 de CartaCapital, em 24 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Comando de caça’

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