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Com o Brexit, empregos no Reino Unido serão difíceis de preencher

Setores como agricultura, hotéis e restaurantes, construção, indústria e saúde terão dificuldade em atrair profissionais qualificados

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Por Julia Kollewe

O custo humano e econômico do Brexit é registrado em nacionalidades e empregos, uma lista de sotaques e tarefas que consideramos corriqueiras: o chefe de cozinha italiano, o catador de frutas romeno, o pedreiro polonês…

Segundo grupos setoriais e empresários, está cada vez mais difícil atrair esse tipo de funcionários para a Grã-Bretanha, por causa do colapso da libra esterlina. A queda da moeda desde 23 de junho do ano passado está erodindo os ganhos potenciais, e a incerteza sobre a futura situação dos cidadãos da União Europeia no Reino Unido não ajudou.

Entretanto, a força de trabalho continental na Grã-Bretanha está realizando mais um referendo, desta vez com os pés. Soube-se  que um número recorde de enfermeiros da UE está deixando o Sistema Nacional de Saúde (NHS).

A hemorragia de trabalhadores estrangeiros está sendo atribuída ao fracasso de Theresa May em oferecer garantias aos trabalhadores europeus que vivem no Reino Unido. É provável que a situação piore, agora que a primeira-ministra acionou o artigo 50 e deu início ao processo de dois anos para a Grã-Bretanha deixar a União Europeia.

Os números oficiais revelam que o número de nascidos na UE que trabalham no Reino Unido caiu 50 mil entre outubro e dezembro, para 2,3 milhões, um declínio puxado por quem trabalha em bancos, no setor público e na construção.

A falta de mão-de-obra começa a ser sentida em toda a economia, da construção, agricultura e setor fabril a lares para idosos, hotéis e restaurantes. Embora o número de nascidos na UE que estão partindo seja limitado atualmente, muitas empresas, segundo o Banco da Inglaterra, enfrentam dificuldade para contratar no exterior. Algumas têm alugado casas para empregados ou fornecendo miniônibus para transportá-los ao trabalho, como maneiras de atrair pessoal extremamente necessário.

Em meio a temores de que o gotejar de trabalhadores que partem se torne uma enxurrada, foi acionada a busca por soluções. Uma delas é o investimento em um fenômeno que vai dominar toda a discussão sobre empregos e salários nos próximos anos: a automação. O grupo de pensadores Resolution Foundation diz que setores que dependem muito de trabalhadores migrantes mal remunerados, como agricultura, construção e alimentos industrializados, poderiam investir mais em maquinário e robótica para suprir a lacuna no emprego.

Isso deverá causar um aumento da produtividade, a produção por hora trabalhada, e levar consigo os salários, alcançando um dos objetivos mais difíceis de Philip Hammond, o secretário do Tesouro da Grã-Bretanha. Mas outros setores vão precisar treinar mais empregados britânicos para preencher o buraco, o que poderá levar vários anos.

“Os empregadores precisam começar a se preparar agora”, disse Stephen Clarke, analista econômico da Resolution Foundation. O último relatório do Banco da Inglaterra, cujos agentes percorreram o país entre o final de novembro e o final de fevereiro, falando com centenas de empresas, revelou que a construção, engenharia, distribuição, informática, saúde e restaurantes “com frequência relataram dificuldades de contratação”.

Eles descobriram que alguns trabalhadores da UE foram embora porque a queda da libra reduziu o valor dos ganhos que mandam para casa. “No entanto, houve mais relatos de dificuldades para contratar novos migrantes da UE, devido à menor oferta de candidatos.”

Ufi Ibrahim, executivo-chefe da Associação Britânica de Hotelaria, confirmou essas conclusões. “Alguns de nossos membros relataram que está ficando mais difícil contratar chefs de fora do Reino Unido, pois muitos estão desanimando diante da indecisão do governo em confirmar os direitos dos cidadãos europeus que já vivem [aqui].”

Vila de operários na Grã-Bretanha (Foto: Pixabay)

A mão de obra em hotéis e restaurantes, manufaturas e transporte são formadas, respectivamente, por 33%, 23% e 20% de pessoas não nascidas no Reino Unido, segundo a consultoria de recursos humanos Mercer, cujo sócio Gary Simmons diz que o Brexit está ocorrendo depois de quatro anos de queda no número de trabalhadores nascidos na Grã-Bretanha.

“Desde 2013, a mão de obra nascida no Reino Unido vem diminuindo conforme as pessoas se aposentam, e podemos ver que certos setores dependem de trabalhadores estrangeiros para preencher as vagas”, disse ele. “O Reino Unido provavelmente imporá mais controles rígidos à imigração… Toda companhia em todos os setores no Reino Unido estará competindo por um número reduzido de trabalhadores disponíveis.”

A consultoria de construção Arcadis diz que o fim do livre movimento de mão de obra e a adoção de um sistema de vistos poderá facilmente acrescentar centenas de milhares de libras aos custos individuais das empresas. Só na Arcadis, 5% de uma força de trabalho de 4.000 no Reino Unido vêm da UE.

Supondo que um visto de três anos custe 3.000 libras, mais a nova sobretaxa de capacitação do Ministério do Interior, de 1.000 libras por ano, significaria que contratar 200 trabalhadores da UE daria uma conta de 1,2 milhão de libras. Contratar um chef, um apanhador de frutas ou um construtor vai ficar mais caro.

Estes são os setores do Reino Unido mais afetados pelo Brexit e seu impacto sobre a força de trabalho:

Agricultura
Total de trabalhadores: 385.000
Nascidos no Reino Unido: 328.000
Nascidos na União Europeia: 30.000
Não nascidos na União Europeia: 27.000

Os plantadores de frutas britânicos conseguiram recrutar trabalhadores sazonais para este verão, mas tiveram menos candidatos entre os quais escolher. Laurence Olins, presidente do órgão setorial British Summer Fruits (BSF), disse que se antes cada emprego atraía dez candidatos neste ano havia apenas três ou quatro interessados.

“Há menos opção para os empregadores. Podemos conseguir o número, mas não a qualidade que tínhamos antes”, disse ele. Segundo Olins, o principal culpado é a queda de 12% da libra em relação ao euro desde a votação no Brexit.

“Os trabalhadores da UE sofrem um grande corte nos pagamentos, apesar de o salário ter aumentado com o salário mínimo, porque se transforma em menos euros. Estamos em uma grande concorrência com países europeus como a Alemanha e a Holanda, onde não há problemas de câmbio.”

A indústria de colheita de frutos emprega 29 mil trabalhadores temporários, que voltam para seu país natal depois de seis a nove meses no Reino Unido. Virtualmente todos eles vêm da UE, principalmente da Romênia e da Bulgária, mas também da Polônia e da Hungria. A horticultura em geral conta com 85 mil trabalhadores sazonais. “Estamos muito preocupados com 2018 e 2019”, acrescentou Olins. “Não está sendo implantado um esquema, mas temos de viver um ano de cada vez.”

O Sindicato Nacional de Agricultores pressiona por um sistema especial de vistos para trabalhadores temporários nas fazendas. A BSF adverte que do contrário os plantadores poderão transferir suas operações para a França ou outros países da UE.

Hotéis e restaurantes
Total de trabalhadores: 1,9 milhão
Nascidos no Reino Unido: 1,3 milhão
Nascidos na União Europeia: 265.000
Não nascidos na União Europeia: 369.000

Hotéis, bares e restaurantes contam fortemente com os trabalhadores não nascidos no Reino Unido. Apenas um em cada 50 candidatos a empregos no Pret A Manger é britânico, e a rede de sanduíches disse que sofrerá falta de pessoal se tiver de dispensar os nascidos na UE.

Denis O’Donnell, dono do restaurante Peruga em Stockport, no Cheshire, sentiu o problema. “Houve um surto enorme de demanda por pessoal de cozinha, e quase nenhuma resposta a anúncios”.

Ele conta que na última reunião da Associação Britânica de Hotelaria, “quem tomava muitas notas e dizia: “Não conseguimos chefes de cozinha”. Ele acrescenta que os indivíduos adotam “medidas ridículas” para conseguir funcionários, como alugar casas e transportá-los ao trabalho.

A resposta óbvia, segundo ele, seria pagar salários mais altos para atrair bons funcionários, e O’Donnell admite que o salário aumentará gradualmente conforme o Brexit se tornar realidade. Ele brinca que se os chefs recebessem 100 mil libras (388 mil reais), o dobro do que ganham atualmente por ano em Londres, ainda viriam para a Grã-Bretanha. No passado, muitos chefs vinham da Espanha e da Itália, mas ultimamente os europeus-orientais tornaram-se mais comuns.

O’Donnell emprega 24 funcionários, incluindo dez em tempo integral. Destes, quatro são nascidos na UE: um casal italiano, um dos quais é maître, mais um lituano e um garçom húngaro. Ele diz que estes dois são “caras bons, sólidos, confiáveis, com mais de 60 anos. Você não consegue ingleses de 60 para fazer esse serviço”.

Construção
Total de trabalhadores: 2,4 milhões
Nascidos no Reino Unido: 2,1 milhões
Nascidos na União Europeia: 192.000
Não nascidos na União Europeia: 201.000

O Instituto Real de Pesquisadores Registrados (Rics) diz que a indústria da construção poderá perder mais de 175 mil empregados — ou 8% da força de trabalho do setor — se o Reino Unido perder o acesso ao mercado único europeu. Isso poderia colocar em risco projetos chaves, como a ligação ferroviária HS2 entre Londres, a região de Midlands e o norte da Inglaterra.

A Bellway, uma grande construtora de residências, advertiu  que a dependência da indústria de construção de trabalhadores estrangeiros poderá dificultar a luta contra o deficit habitacional britânico se houver um êxodo de trabalhadores da UE.

Ted Ayres, executivo-chefe da construtora sediada em Newcastle, disse: “A grande coisa para a indústria da construção é que dependemos de mão de obra do exterior. O artigo 50 terá um impacto sobre quem não quer viver no Reino Unido, ou impedirá que mais  venham ao país para nos ajudar a suprir a demanda habitacional? Não poderemos construir o número de unidades totalmente com mão-de-obra britânica”.

Na Bellway e em outras construtoras, cerca de 70% da força de trabalho em obras em Londres são do exterior. Várias grandes construtoras de residências estariam preocupadas porque alguns trabalhadores da UE não retornaram depois das férias de Natal.

Rob Tincknell, executivo-chefe da Battersea Power Station Development Company, disse recentemente ao “Times” que uma construtora tinha 15 mil trabalhadores em obras antes do Natal e só 11 mil voltaram após o feriado. Um porta-voz da Redrow, outra grande construtora de casas, diz que sua força de trabalho é “uma verdadeira Liga das Nações. Não estamos vendo pânico ou um grande êxodo, mas não há espaço para complacência. É algo em que devemos estar de olho vivo.”

Manufatura
Total de trabalhadores: 3,4 milhões
Nascidos no Reino Unido: 2,6 milhões
Nascidos na União Europeia: 362.000
Não nascidos na União Europeia: 417.000

A organização do setor fabril, EEF, também relatou que alguns trabalhadores não retornaram das férias de Natal. A indústria de alimentos e bebidas, o maior setor industrial do Reino Unido, emprega 115 mil nascidos na UE. Ian Wright, diretor-geral da Federação de Alimentos e Bebidas, disse que os integrantes relataram em uma pesquisa no fim do ano passado que seus empregados europeus se sentiam “indesejados e desconfortáveis”. Um em cada 12 indústrias com empregados europeus disse que parte de seus funcionários pretendia deixar o Reino Unido.

Wright acrescentou: “Nossos integrantes também disseram que estão tendo dificuldade para recrutar europeus para certas funções. Enfrentamos falta de capacitação e pedimos acesso a esses empregados para continuarmos competitivos. Eles são vitais para manter o Reino Unido alimentado. Se você não puder alimentar um país, não terá um país”.

Saúde e assistência social
Total de trabalhadores: 4,4 milhões
Nascidos no Reino Unido: 3,7 milhões
Nascidos na União Europeia: 217.000
Não nascidos na União Europeia: 430.000

Crescem os temores de que o Brexit leve a uma crise de pessoal em saúde e assistência social. Um número recorde de enfermeiros da UE tem deixado o Sistema Nacional de Saúde (NHS), e o número de nascidos na UE que se registram como enfermeiros na Inglaterra despencou 92% desde o referendo. As pressões irão crescer, porque um terço dos médicos pretende se aposentar até 2020.

Os lares de assistência, onde problemas de falta de verbas e recrutamento atingiram níveis críticos, também dependem enormemente dos trabalhadores da UE. Seu número disparou em mais de 40% entre dezembro de 2013 e setembro de 2016, chegando a 92 mil. É a data mais recente para a qual há números disponíveis. Os trabalhadores europeus formam 7% de uma força de trabalho em assistência social de 1,34 milhão (em Londres a porcentagem é de 12%).

O professor Martin Green, executivo-chefe do órgão setorial Care England, disse que um pequeno número de trabalhadores nascidos na UE está partindo, mas o verdadeiro problema é recrutar novos funcionários. Quando um recrutamento de enfermeiros foi realizado em Portugal uma semana após o referendo de junho, a metade dos candidatos retirou suas inscrições. Mais medidas de recrutamento estão planejadas, mas, segundo ele, ficou mais difícil devido à fraqueza da libra.

“Em uma fase estava em 1,4 euro por libra e era realmente vantajoso para os cidadãos europeus estar aqui, mas esse tempo passou”, acrescentou Green. “Se eu estiver na Polônia, posso chegar à Alemanha em algumas horas. Costumava valer a pena ir ao Reino Unido porque eu ganhava mais, mas hoje não vale.”

O sistema de assistência social não tem fundos para pagar salários melhores, o que significa que muitos britânicos não querem trabalhar em lares de assistência. “O governo precisa inventar uma estratégia clara de longo prazo. Se não, terá problemas enormes com o NHS.”

Green disse que o setor de cuidados deve ser poupado da taxa de aprendizado — que cobra das empresas 0,5% de sua folha de pagamentos anual — e deveria ter um regime de licenças de trabalho mais fácil para trabalhadores de fora do Reino Unido.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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