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Com novo surto de Covid, China volta a confinar 37 milhões de habitantes

Como o risco de infecção era perto de zero, muitos chineses passaram a recusar as vacinas

Com novo surto de Covid, China volta a confinar 37 milhões de habitantes
Com novo surto de Covid, China volta a confinar 37 milhões de habitantes
Perigo. Quase um quinto dos idosos não foi vacinado. Na faixa dos 80 anos, metade não tem o ciclo completo - Imagem: STR/AFP
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Quando os bairros vizinhos entraram em confinamento, Liu Li começou a fazer estoque. A funcionária de uma revista chinesa de 42 anos comprou vegetais, frutas, remédios e outros suprimentos, aumentando as reservas de produtos básicos que mantinha desde o início da pandemia. No domingo 13, uma moradora da comunidade onde Liu vive com a mãe, em Changchun, na província de ­Jilin, oeste da China, testou positivo. Todos receberam ordem para ficar em casa.

O novo bloqueio, até agora, tem sido bom. “Levo uma vida normal”, diz ela. “Trabalho quando há tarefas para mim. Se não houver, converso com minha mãe, assisto tevê ou brinco com meu gato.” Liu tem mais sorte que alguns: ela trabalha em casa e estava bem preparada. Mas também há um risco. Sua mãe sofre de câncer e não foi vacinada. Elas estão hoje entre os 37 milhões de ­pessoas em quarentena na China, enquanto as autoridades combatem o maior surto da pandemia no país.

A China conteve com sucesso cada um dos surtos anteriores, por meio de uma reação com muitos recursos, incluindo testes em massa, paralisações de transportes e bloqueios localizados. Porém, desta vez, a Ômicron – variante mais branda, mas muito mais contagiosa – desafiou as antigas estratégias. Na sexta-feira 18, 4.130 casos confirmados e assintomáticos foram registrados em mais de 20 províncias chinesas, incluindo 2.626 em ­Jilin. No dia seguinte, foram contabilizadas na região as duas primeiras mortes por Covid-19 no país em mais de um ano. Segundo previsões da Universidade de Lanzhou, 35 mil pessoas vão contrair o vírus até o início de abril, se ele não for contido.

A mídia estatal diz que 95% dos casos são leves, mas uma grande preocupação é que cerca de 17 milhões de pessoas com mais de 80 anos, aproximadamente, a metade dessa faixa etária, ainda não estão totalmente vacinadas, segundo uma análise de dados de vacina e população. Apenas 19,7% tiveram um reforço, disseram autoridades de saúde na sexta-feira 18. Elas estão entre os cerca de 52 milhões de indivíduos com mais de 60 anos (19%) que não foram vacinados.

Como o risco de infecção era perto de zero, muitos chineses passaram a recusar as vacinas

Ao contrário de muitos outros países onde os profissionais de saúde geralmente incentivaram a vacinação, na China muitos dos que não foram imunizados dizem estar seguindo o conselho de seus médicos. “Como ela é uma paciente com câncer e foi submetida a duas operações, não pode ser vacinada”, afirma Liu. “O médico sugeriu que isso fosse decidido conforme a nossa condição física e o ambiente em que vivemos.”

Um cidadão na rede social chinesa Weibo fez um relato semelhante: “Minha mãe tem muitas síndromes, então ela não pode ser vacinada. Fomos ao hospital três vezes e eles não a vacinaram, então desistimos”. O medo de reações adversas é um motivo comum entre idosos não vacinados. “Meu sogro e minha sogra têm pressão alta, por isso não ousaram ser vacinados”, comentou outro usuário no Weibo.

Em vez disso, Liu tomou outras precauções para proteger sua mãe. Antes do último bloqueio, ela não saía muito, mas, quando o fazia, evitava multidões e usava máscara. “Contanto que eu tome mais cuidado na vida diária, as coisas vão ficar bem.”

As baixas taxas de vacinação nesse grupo demográfico vulnerável também surgiram em Hong Kong – onde idosos não vacinados aparecem de modo desproporcional entre os doentes e os mortos – e Taiwan, que está correndo para convencer seus moradores a tomarem a vacina antes do surto.

Fonte: Comitê Nacional de Saúde da China

O professor Chi Chun-huei, diretor do Centro para Saúde Global na Universidade do Oregon (EUA), chama a hesitação de “paradoxo da política de Covid ­Zero”. “Quando havia um período prolongado sem qualquer surto doméstico, o risco de infecção era próximo de zero”, afirmou ao Observer. “Quando as pessoas­ na China avaliam o benefício versus os riscos da vacinação contra a Covid, o benefício percebido é quase zero, enquanto os riscos percebidos (de efeitos colaterais e complicações) são relativamente altos.”

Um estudo de novembro de 2021 sobre a hesitação relativa a vacinas na China também listou o preço como uma das três principais preocupações, apesar de o governo ter anunciado, em janeiro de 2021, que seria gratuita. “Ou a vacinação gratuita não era completamente universal ou o programa gratuito não foi bem comunicado ao público”, diz Chi.

Alguns moradores se cansaram das interrupções na vida causadas pela política de “dinâmica zero” para combater os surtos. Na sexta-feira 18, viralizaram gravações de trabalhadores vestidos com equipamento de proteção lutando com moradores em um estacionamento. ­Online, as pessoas criticaram ­Shenzhen, Xangai e Hong Kong por menosprezarem outras províncias com políticas menos restritivas.

Um bloqueio de um mês em 30% da China poderia fazer o PIB cair 1 ponto, estima o Goldman Sachs

O governo continua comprometido com a política, mas há sinais de preocupação de que o custo esteja se tornando intoleravelmente alto. Na semana passada, o Goldman Sachs estimou que um bloqueio de um mês de 30% da China poderia fazer o PIB cair 1 ponto ­porcentual. Em uma reunião a portas fechadas do Comitê Permanente do Politburo, na quinta-feira 17, o líder chinês, Xi Jinping, pareceu reconhecer o preço das políticas quando exigiu que a China se esforçasse para “o máximo de prevenção e controle ao menor custo e minimizar o impacto da epidemia sobre o desenvolvimento econômico e social”.

É mais fácil falar do que fazer. Há indícios de que as autoridades reconheceram que este surto foi diferente. Pela primeira vez, a China aprovou o uso de testes rápidos de antígeno feitos em casa e acrescentou o uso de pílulas antivirais da Pfizer às diretrizes da pandemia. Declarou ainda o fim da internação obrigatória dos pacientes com Covid e vai enviar casos assintomáticos e leves para instalações de isolamento centralizadas.

No centro de tecnologia de Shenzhen, a Foxconn, fornecedora da Apple, foi uma das empresas que voltaram a funcionar alguns dias após o bloqueio de toda a cidade, adotando um sistema de “circuito fechado” semelhante ao que funcionou durante os Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim para minimizar a disfunção econômica.

Chi Chun-huei avalia, porém, ser improvável que abandonem a “dinâmica zero” tão cedo. Dezenas de funcionários locais foram demitidos ou punidos por causa do surto. O governo de Hong Kong atraiu a ira de Pequim pelo manejo incorreto do surto da variante Ômicron, que as autoridades de saúde estimam que infectou cerca de metade da população. “A legitimidade política do Partido Comunista Chinês depende de sua capacidad­e de oferecer aos chineses uma vida estável e segura, para a qual conter a infecção por Covid-19 é fundamental.”

Efeito colateral. Os testes em massa e a rigidez no confinamento contrastam com a falta de zelo na imunização – Imagem: Li Bo/Xinhua/AFP e Zhang Yang/Xinhua/AFP

O surto colocou a China numa encruzilhada. Se a contenção não funcionar, o número de casos entre uma população de 1,4 bilhão de pessoas será enorme, e os analistas preveem grandes perturbações na economia e na cadeia de suprimentos global. Se a contenção funcionar, surge a pergunta: o que virá depois? As estratégias de “Covid Zero” dependem de fronteiras fechadas e viagens fortemente restritas, e a doença estará no mundo num futuro previsível. Quando a China reabrirá?

O professor Antoine Flahault, diretor do Instituto de Saúde Global da Universidade­ de Genebra, afirma que a Ômicron levou a “dinâmica zero” a não ser mais uma opção eficaz ou sustentável, citando o impacto econômico dos bloqueios que também parecem cada vez mais desproporcionais para pessoas que sofrem de Covid leve.

Chi espera que a China contenha o surto, mas sugere que a disseminação contínua em um ambiente bem preparado pode não ser a pior coisa, uma vez que estudos recentes disseram que a imunidade natural oferece proteção mais forte do que as vacinas. “A variante Ômicron, com alto grau de contágio e baixa gravidade/fatalidade, é uma boa candidata para alcançar essa forte imunidade da população”, diz Chi.

Por enquanto, Liu Li está confortável em seu bloqueio, mas sugere que vê o futuro imaginado por Antoine Flahault. Ela está confiante em que a China vencerá o surto, por meio das medidas ­atuais e com maior imunidade e melhores opções de tratamento. “Não estou preocupada. Ao contrário, acho que as coisas vão melhorar.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1201 DE CARTACAPITAL, EM 30 DE MARÇO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “O paradoxo chinês”

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