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Com muitas promessas não cumpridas, Biden irrita a base de eleitores jovens, negros e migrantes

Um sentimento crescente de traição é compartilhado por defensores de tudo, que viram a maioria governante democrata como oportunidade única

O perigo ronda. Biden e Harris lidam com a frustração dos eleitores. Trump espreita. (FOTO: Saul Loeb/AFP, The White House e Chip de Somodevilla/Getty Images/AFP )
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Quando Joe Biden se reuniu com um grupo de historiadores em março, a conversa girou em torno de pensar grande como um de seus antecessores, Franklin Delano Roosevelt, o arquiteto do New Deal. Biden, ao que parece, queria se juntar a ele na primeira fila de presidentes transformadores dos Estados Unidos. Seis meses depois, uma reunião muito diferente aconteceu do lado de fora dos portões da Casa Branca.

Cinco jovens ativistas do clima, com cartazes nas mãos e sentados em cadeiras dobráveis, iniciaram uma greve de fome por tempo indeterminado. Foi uma expressão visceral de repulsa pelo que eles consideram a disposição de Biden de pensar pequeno e quebrar suas promessas. “Os jovens compareceram em número recorde para elegê-lo, por causa de seus compromissos com o clima”, disse Nikayla Jefferson, de 24 anos, uma ativista que apoia os silenciosamente determinados grevistas de fome na orla do Parque Lafayette. “Mas no último mês ele quase desistiu. Ele não tem sido um líder neste momento da maneira como precisamos que ele seja.”

Um sentimento crescente de traição é compartilhado por defensores de tudo, desde o direito ao uso de armas à reforma da imigração, de justiça racial a direitos de voto, que viram a maioria governante democrata como oportunidade única em uma geração. Em vez disso, as lutas internas do partido colocaram em risco a agenda de Biden e poderão resultar na desilusão dos apoiadores nas eleições de meio de mandato no próximo ano. O 46º presidente assumiu o cargo com a promessa de atacar quatro crises – Coronavírus, clima, economia e justiça racial –, mas viu seu índice de aprovação cair para 42%, após colidir com algumas duras realidades políticas e econômicas.

Estas incluem o crescimento brando dos empregos, greves trabalhistas, aumento da inflação e dos preços do petróleo, congestionamentos na cadeia de abastecimento global, número recorde de prisões na fronteira com o México e uma retirada fracassada das forças norte-americanas do Afeganistão, que levantou questões inesperadas sobre sua competência. Até mesmo negócios rotineiros, como nomear um embaixador no Japão, parecem ter sido atrapalhados: a escolha de Biden para Tóquio, Rahm Emanuel, provocou uma reação dos liberais por causa de seu histórico sobre justiça racial como prefeito de Chicago.

O 46° presidente dos EUA quer ser tão marcante quanto Roosevelt. Por ora…

A preocupação de que Biden tenha perdido o rumo foi intensificada por seu fracasso em dar uma entrevista coletiva aberta a todos desde que assumiu o cargo, em janeiro. Nesse período, ele fez apenas dez entrevistas individuais, muito menos que Barack Obama ou Donald Trump no mesmo estágio. A maior sensação de uma presidência paralisada deriva, no entanto, de disputas aparentemente intermináveis entre os congressistas democratas sobre o projeto de infraestrutura de Biden, de 1 trilhão de dólares, e um pacote social e ambiental de 3,5 trilhões.

Dois senadores em particular, Joe Manchin, de Virgínia Ocidental, e ­Kyrsten Sinema, do Arizona, exigiram cortes no pacote de reconciliação, o que provocou discussões públicas com o senador Bernie Sanders e outros progressistas que passaram a dominar Washington e barrar outras causas urgentes.

A orgulhosa marcha de Biden para os livros de história parece ter caído na confusão interna do partido. Jeff Merkley, senador democrata pelo Oregon, disse ao programa Meet the Press Daily da rede MSNBC: “Isso retira o ar do balão para a presidência de Biden. Prejudica o presidente, prejudica os democratas. Mina a visão de que todas as nossas conquistas serão altamente significativas”.

Com sua agenda legislativa em um limbo, se não em perigo, Biden foi forçado a intervir, receber ambas as facções na Casa Branca e assumir um papel mais agressivo. Isso deu a alguns democratas novas esperanças de um avanço, mas indicou que ele reduzirá o pacote de 3,5 trilhões de dólares em favor de uma proposta mais modesta, o que ameaça um programa de eletricidade limpa que foi a peça central de sua estratégia climática.

Ele também destacou as preocupações de que Biden ceda aos interesses corporativos em combustíveis fósseis, preços de medicamentos prescritos e aumentos de impostos. Os críticos dizem que ele ficou tão consumido pela reformulação das políticas que perdeu de vista as questões do quadro geral, caras aos seus apoiadores. Entre elas está o destino da própria democracia.

Demandas. Do acesso ao voto às mudanças climáticas, a agenda é ampla e ambiciosa. (FOTO: Kevin Dietsch/AFP e iStockphoto)

Os senadores republicanos implantaram uma regra de procedimento conhecida como obstrução para bloquear pela segunda vez o debate sobre reformas abrangentes que protegeriam o direito de voto. Ativistas que bateram de porta em porta e arrecadaram fundos para Biden alertam que o fato de ele não priorizar a questão acima de todas poderá ser o seu maior motivo de arrependimento.

LaTosha Brown, cofundadora da ­Black Voters Matter, disse: “Eu acredito que ele é contra a supressão de eleitores? Com certeza. Eu acho que ele apoia o direito de voto? Com certeza. Eu acredito que ele está disposto a usar todo o poder de seu governo para garantir que os eleitores que votaram nele não sejam punidos por votarem nele? Isso ainda está para ser visto”.

Em um debate na CNN, Biden sinalizou apoio à reforma da obstrução. Mas ele deveria ter pressionado a causa mais cedo e com mais força, argumenta Brown. “Quando você luta por aqueles que lutam por você, entra nas eleições de meio de mandato com vantagem. Acho que eles desperdiçaram isso escolhendo a estratégia errada. Eles calcularam mal. Os eleitores negros podem não ter outra opção real e viável de partido, mas sempre temos opções”, disse.

Derrick Johnson, presidente da ­NAACP, importante organização civil de afro-americanos, descreveu como “terrível” a passividade da Casa Branca em salvaguardar a democracia. Ele disse ao Washington Post: “Ouvi de muitos dos meus colegas e integrantes que a falta de prioridade em torno dos direitos de voto será a ruína do legado desta presidência”. A decepção ficou evidente novamente quando dezenas de defensores da reforma da imigração encenaram uma paralisação virtual de funcionários do governo durante uma videoconferência. Eles criticam a continuação por Biden das políticas de fronteira da era Trump, como forçar os migrantes a permanecer no México, enquanto aguardam as audiências de asilo, e implantar uma ordem de saúde pública conhecida como Título 42, para expulsar migrantes da fronteira por causa de preocupações sobre a Covid-19.

Ariana Saludares, da organização comunitária Colores United, sediada no Novo México, que participou da greve, disse: “O Título 42 é uma farsa. Os políticos, incluída a atual administração, usam-no para explicar que aqueles que cruzam as fronteiras têm taxas de infecção mais elevadas. Temos os números dos nossos abrigos ao longo das fronteiras para mostrar que isso é absolutamente falso”.

O sucesso do mandato depende da aprovação dos pacotes que somam 4,5 trilhões de dólares em investimentos

Por telefone de Puerto Palomas, pequena cidade fronteiriça no México com falta de água, Saludares perguntou: “Onde está Joe Biden? Onde está ­Kamala­ Harris? Onde estão todas essas coisas que eles disseram que nos poderiam fornecer depois daquele ‘período horrível’? E agora? Isso deixa muitos a se perguntarem o que realmente estão fazendo”.

A decepção dos ativistas de base significa problemas para os democratas antes das eleições de meio de mandato para a Câmara dos Deputados e o Senado, que historicamente tendem a favorecer o partido que não detém a Casa Branca. De forma agourenta, sete deputados democratas anunciaram que se aposentarão em vez de concorrer à reeleição, com outros cinco em busca de outros cargos.

Os democratas temem uma repetição de 2010, quando a tortuosa, mas bem-sucedida aprovação da Lei de Acesso à Saúde de Obama não evitou uma derrota esmagadora no meio de mandato. E a distância paira Trump, que parece propenso a concorrer à presidência novamente em 2024, perspectiva que enche muitos observadores de temor pelo futuro da democracia norte-americana.

Bill Galston, integrante sênior do grupo de pensadores Instituto Brookings em Washington e ex-conselheiro político do presidente Bill Clinton, disse: “Este é, obviamente, um momento delicado na presidência de Biden. No momento, a agenda equivale a aviões em uma espécie de congestionamento, circulando sobre um aeroporto que não tem pistas suficientes para acomodar todos ao mesmo tempo. As coisas vão parecer diferentes quando alguns aviões começarem a pousar, e espero que o projeto de infraestrutura e um projeto de reconciliação reduzido serão de fato promulgados em lei bem antes do fim do ano. Isso mudará o clima em certa medida. A situação não é tão ruim quanto parece, mas é ruim o suficiente”.

Nem todo mundo está triste e cabisbaixo. Antjuan Seawright, estrategista democrata baseado em Colúmbia, na Carolina do Sul, foi mais positivo. “Sinto-me cautelosamente otimista”, disse. “Joe Biden demonstrou ao longo do tempo sua capacidade de levar uma surra e continuar a bater. Ele também demonstrou que, quando os eleitores contam com ele fora, ele sempre os ensina que não sabem contar. Quando a tinta sobre este pedaço da história secar, você verá isso como o tema constante quando se trata de Joe Biden. Acredito que estamos exatamente onde precisamos estar. Mike ­Tyson tem uma frase: ‘A chave para o sucesso é atingir o pico na hora certa’, e acho que Joe ­Biden, no fim, fará exatamente isso.”

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1181 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE OUTUBRO DE 2021.

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