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Com as armas do inimigo

Ao parodiar o comportamento de Trump, o governador Gavin Newsom vira o principal nome da oposição

Com as armas do inimigo
Com as armas do inimigo
Provocador. O californiano percebeu: a melhor forma de enfrentar o republicano é expô-lo ao ridículo. O eleitorado aprova o estilo de Newsom e quer mais – Imagem: Gage Skidmore
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Desde a posse de Donald Trump, em 20 de janeiro, o Partido Democrata tem se comportado como a oposição brasileira no primeiro ano de mandato de Jair Bolsonaro: refugia-se nas notas de repúdio e nos lamentos sem nenhum efeito prático. Uma única e alvissareira exceção é o governador Gavin Newsom, da Califórnia. Newsom decidiu usar as mesmas armas do adversário político e mimetizar o comportamento do republicano nas redes sociais. Nas últimas semanas, sua conta oficial no X, antigo ­Twitter, esmera-se em parodiar a maneira como o atual presidente dos Estados Unidos se expressa, o que inclui palavras em caps lock, excessos de pontos de exclamação, autoelogios, referências sarcásticas, quando não ofensivas, aos rivais e muitos memes. No perfil, lê-se, em caixa alta: Newsom é o “GOVERNADOR FAVORITO DOS EUA”.

A conta oficial também intensificou as sátiras a integrantes e apoiadores do governo Trump, entre eles a secretária de Segurança Interna, Kristi Noem, apelidada de “Commander ­Cosplay”, e o senador Ted Cruz, chamado de “Cancun Cruz”, além de dedicar mensagens sarcásticas ao próprio presidente, o “Small Hands” (Mãos Pequenas).

O eleitorado aprova. Segundo pesquisa do Instituto de Estudos Governamentais da UC Berkeley, publicada na sexta-feira 22, do total de entrevistados, 59% desejam que Newsom mantenha a postura diante de Trump, enquanto 29% gostariam de um comportamento mais cooperativo. Em uma entrevista coletiva, o governador justificou da seguinte maneira a tática: “Apenas sigo o exemplo dele. Se alguém tem problemas com o público, deveria se preocupar muito mais com o que o presidente publica como chefe de Estado. Acho importante que, na medida em que isso chama atenção, fico satisfeito. Mas a questão mais profunda é como permitimos a normalização dessas mensagens de Trump sem um escrutínio equivalente e sem cobrança?”

No domingo 24, o governador e sua equipe elevaram o nível do deboche ao inaugurar The Patriot Shop, loja online que parodia a estética da campanha e dos produtos vendidos pelo trumpismo. “MUITAS PESSOAS ESTÃO DIZENDO QUE ESTA É A MELHOR MERCADORIA JÁ FEITA. APROVEITE, AMÉRICA!”, anuncia a página, obviamente em letras garrafais. Na plataforma são vendidos de bonés vermelhos MAGA com os dizeres “Newsom estava certo sobre tudo!” a regatas “Trump não é atraente” (uma referência à crítica do presidente a Taylor Swift) e camisetas que nomeiam o governador democrata como “O Escolhido” (uma menção à declaração do próprio republicano em 2019). As Bíblias autografadas pelo governador vendidas por 100 dólares estão esgotadas. Em menos de dois dias, a loja havia negociado mais de 100 mil dólares em produtos.

Os trumpistas acusaram o golpe. O presidente dos EUA chamou Newsom de “amador digital incompetente”, enquanto republicanos em todo o país ficaram furiosos. Os democratas, após um longo período de seca, parecem finalmente lavar a alma. Levantamento da rede de tevê CNN mostra que o número de seguidores do gabinete do governador no X cresceu 450% desde junho. No TikTok e no Instagram, o californiano ganhou mais de 1 milhão de seguidores desde janeiro. No Google, as buscas pelo nome de Newsom dispararam: desde 1º de junho, as pesquisas diárias aumentaram 1.300%, e em agosto chegaram a 500% de crescimento.

Nas redes sociais do democrata, palavras em maiúscula, memes e sátiras dos adversários

O democrata percebeu que a melhor maneira de enfrentar Trump é ridicularizá-lo. Ao adotar letras maiúsculas em suas postagens, ele conseguiu esvaziar a tática do republicano a tal ponto que o próprio presidente dos EUA parou de escrever suas postagens dessa maneira. A estratégia vai, no entanto, além dos posts virais. Newsom descentralizou sua comunicação. Em vez de conceder entrevistas apenas a programas e canais consolidados, passou a receber influenciadores, ­youtubers, ­podcasters e criadores digitais progressistas fora da “bolha” da mídia tradicional, um meio de não apenas fortalecer as pequenas vozes independentes de esquerda, mas de expandir organicamente sua presença nas plataformas que moldam um novo ecossistema digital. Dessa maneira, como Trump, o democrata conquista aliados fiéis.

Quando o republicano enviou, em junho, tropas da Guarda Nacional a Los Angeles para reprimir as manifestações contra as novas políticas de imigração do governo federal, o democrata e sua equipe perceberam, pela primeira vez, que as respostas tradicionais não seriam suficientes. “Donald Trump está criando medo e caos ao ignorar a Constituição e ultrapassar seus poderes. Isso não é mera incompetência. É intencional, terrorismo político, um ataque direto aos princípios da nossa democracia”, afirmou o governador à época.

Historicamente, Newsom combate as causas conservadoras e reacionárias. Em 2003, aos 36 anos, tornou-se o mais jovem prefeito de São Francisco em um século, mas só conquistou projeção nacional um ano depois, ao autorizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, um divisor de águas nas políticas progressistas dos EUA. Como governador da Califórnia, tem consolidado a imagem de gestor reformista e liberal, transformando o estado em uma espécie de laboratório de políticas públicas avançadas e epicentro do embate contra a agenda trumpista e a cultura do MAGA.

Na segunda-feira 5, o governador também passou a liderar, com apoio de Barack Obama, iniciativas de redefinição dos distritos eleitorais no estado, que ele apelidou de Lei de Resposta à Fraude Eleitoral, pedindo à população que aprove um mapa desenhado que facilitaria a vitória dos democratas sobre os cinco republicanos nas eleições de meio de mandato do próximo ano. A medida só passará a valer se as manobras republicanas no Texas forem de fato aplicadas. Durante evento de arrecadação de fundos, o ex-presidente justificou o apoio ao projeto. “Sei que, se não respondermos efetivamente, a Casa Branca e os governos estaduais controlados pelos republicanos em todo o país não vão parar, porque eles não parecem acreditar nessa ideia de uma democracia inclusiva e expansiva.” Agora que tem a bênção de Obama e uma audiência cada vez maior e sedenta pelos próximos posts, Newsom habilita-se a liderar a oposição daqui em diante. •

Publicado na edição n° 1377 de CartaCapital, em 03 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Com as armas do inimigo’

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