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Com a boca na botija

Pela primeira vez, a Fox News pode ser condenada por difamação nos EUA

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Provas robustas. Murdoch, diretores e âncoras do canal sabiam que as acusações divulgadas eram falsas, mostram e-mails – Imagem: David Shankbone e iStockphoto
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Depois de Joe Biden ter sido declarado vencedor na eleição presidencial de 2020, vários apresentadores da Fox News, a poderosa rede que alimenta o pulso dos norte-americanos conservadores, veicularam alegações bizarras e falsas sobre a votação. Muitas tinham a ver com a Dominion, empresa de equipamentos de votação fundada em 2003, da qual a maioria dos eleitores nunca tinha ouvido falar. Repetidamente, a Fox transmitiu a mentira de que as máquinas da Dominion fraudaram a eleição e inverteram os votos. Foi divulgada a mentira de que a empresa havia sido fundada na Venezuela para fraudar as eleições de Hugo Chávez. E a mentira de que tinha subornado funcionários do governo dos EUA para adotarem suas máquinas.

Nenhuma dessas afirmações era verdadeira e os apresentadores, produtores e executivos da Fox sabiam. Um impressionante conjunto de comunicações internas obtido pela Dominion mostra uma descrença generalizada na empresa. Todos, do CEO da Fox, Rupert ­Murdoch, aos principais apresentadores, como Sean Hannity e Tucker Carlson, sabiam que as denúncias eram falsas, apesar de a rede continuar a exibi-las para milhões de espectadores. Essas mensagens e reivindicações estão agora no centro de um julgamento com júri de seis semanas, de grande sucesso, iniciado na terça-feira 18 em Wilmington, no estado de D­elaware. A Dominion processa a Fox News e sua controladora Fox Corporation por difamação, e pede ao menos 1,6 bilhão de dólares para cobrir os danos à reputação sofridos em consequência das mentiras. O júri também pode optar por impor indenizações punitivas adicionais.

O julgamento é visto como uma das melhores oportunidades para responsabilizar a Fox e Murdoch, acusados há anos de distorcer a verdade para atrair os telespectadores conservadores. “Não é apenas uma retaliação por algo insignificante”, disse Angelo Carusone, presidente da Media Matters for America, grupo de vigilância da mídia de tendência esquerdista. “Tornou-se uma espécie de substituto para eleições e o 6 de janeiro.”

É extremamente raro um caso de difamação ir a julgamento – a maioria é arquivada ou encerrada. A lei dos Estados Unidos estabelece um critério extremamente alto que os queixosos devem cumprir para ganhar um caso, exigindo que eles provem que alguém agiu com “malícia real”, conhecimento ou desrespeito imprudente pela verdade, quando publicou uma afirmação falsa.

Mas este é um episódio incomum, dizem os especialistas, porque o caso da Dominion é muito forte. As evidências que eles produziram oferecem o mais próximo possível de provas concretas. “Coisas realmente loucas. E prejudiciais”, escreveu Rupert Murdoch em um e-mail de 19 de novembro de 2020, enquanto observava Rudy Giuliani fazer afirmações falsas sobre a Dominion em uma coletiva de imprensa. “Sidney ­Powell está mentindo, aliás. Eu a peguei. É uma loucura”, escreveu Tucker Carlson numa mensagem de texto em 18 de novembro de 2020, referindo-se a uma advogada de Donald Trump que continuou a usar a Fox para espalhar falsas alegações sobre a empresa. “É incrivelmente ofensivo para mim. Nossos telespectadores são boa gente e acreditam nisso.”

A Dominion, empresa de equipamentos de votação, reuniu provas consistentes e pede 1,6 bilhão de dólares

Em meados de novembro, a operação interna de verificação de fatos da Fox, chamada Brain Room, investigou as denúncias sobre a Dominion e determinou que eram falsas. RonNell Andersen Jones, estudioso da Primeira Emenda Constitucional na Universidade de Utah, disse que a história caminha para se tornar o “caso de difamação mais importante em gerações”. “É ridiculamente raro ter um desses casos reais de dolo, em que o autor pode mostrar ao júri uma série de declarações que dizem, diretamente, ‘isso é uma mentira’. Ou ‘isso é loucura’. Ou ‘isso é ridículo’, ou ‘essa fonte está mentindo’.”

Mentiras sobre a eleição de 2020, como as espalhadas pela Fox, ­infiltraram-se na ortodoxia do Partido Republicano e resultaram em uma onda de assédios contra as autoridades eleitorais, esforços para anular os resultados das eleições e a violência no Capitólio em 6 de janeiro de 2021. Isso agora é comumente chamado de “a grande mentira” nos Estados Unidos, a crença de que as eleições não são confiáveis. Os advogados da Dominion argumentam em processos judiciais que a Fox fez uma opção deliberada ao divulgar essas mentiras eleitorais, porque estava preocupada em perder espectadores para concorrentes de extrema-direita. “O arco narrativo da Dominion aqui é muito sobre o dano que essa mentira corporativa consciente causou ao país e sua população”, disse Jones. “O que é único neste caso é que também vemos os queixosos argumentarem que seu caso tem a ver com a preservação da democracia. Que essa mentira era prejudicial não apenas para a empresa de urnas, mas para todo o eleitorado e a própria democracia.”

Talentos da Fox, incluindo Carlson, ­Hannity, Maria Bartiromo e Jeanine ­Pirro, bem como Rupert e Lachlan ­Murdoch, provavelmente serão testemunhas-chave no julgamento, preparando o palco para semanas de frenesi da mídia em Wilmington, cidade tranquila na qual muitas empresas norte-americanas estão formalmente sediadas por benefícios fiscais.

O testemunho ao vivo de Murdoch e dos principais apresentadores ofereceria uma rara oportunidade para os advogados da Dominion forçarem alguns dos personagens mais poderosos da mídia dos EUA a responder sob juramento se mentiram conscientemente para o público. “Há uma enorme diferença entre ver esses e-mails, escrever sobre eles e fazer as pessoas falarem sobre como ­Maria Bartiromo não conseguiu responder a essa pergunta ou como fizeram Tucker ­Carlson parecer um tolo no depoimento”, disse Levine. “Quero dizer, é uma ordem de magnitude totalmente diferente.”

Um veredicto de 1,6 bilhão de dólares a favor da Dominion, mais indenizações punitivas adicionais, prejudicaria a Fox, mas não seria fatal para a empresa, que registrou receita de 13,97 bilhões no último ano fiscal. “Nas próximas semanas, provaremos que a Fox espalhou mentiras que causaram enormes danos à Dominion. Estamos ansiosos pelo julgamento”, disse um porta-voz da empresa num comunicado. Um porta-voz do grupo midiático chamou o processo de “cruzada política em busca de um ganho financeiro inesperado, mas o custo real seria estimado pelos direitos da Primeira Emenda”. •


Tradução: Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1256 de CartaCapital, em 26 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Com a boca na botija’

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