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Colonialismo nuclear

Desde a Segunda Guerra Mundial, potências atômicas bombardeiam com frequência micronações e territórios indígenas

Colonialismo nuclear
Colonialismo nuclear
Imagem: iStockphoto
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Três semanas antes de lançar a bomba atômica sobre ­Hiroshima, os Estados Unidos fizeram, em julho de 1945, um primeiro teste, no Novo México. Àquela época, o governo tratava o território da Nação Diné, dos povos indígenas Navajos, como deserto e terra de ninguém. Os efeitos da chamada Experiência Trinity espalharam-se por 46 estados norte-americanos, além do México e do Canadá, e, até hoje, os Navajos convivem com 30 toneladas de urânio que o Departamento de Defesa deixou para trás.

Danos como esses não foram provocados pelos norte-americanos apenas em seu próprio país. Entre 1946 e 1958, exatas 67 bombas nucleares foram detonadas nas Ilhas Marshall. O arquipélago da Micronésia lida até hoje com sequelas duradouras, como a contaminação por radiação, o alto nível de câncer congênito e as altas taxas de diabetes, provocada pelo consumo excessivo de alimentos ultraprocessados, que têm de ser importados porque parte da produção local não é própria para consumo.

O país, que após a Segunda Guerra Mundial foi ocupado pelos EUA, recebeu compensações financeiras de ­Washington, mas o valor negociado com os habitantes teve como base informações incompletas. Não se sabia à época a extensão total dos danos e de sua persistência no tempo. Por isso, até hoje, as comunidades locais buscam sem sucesso reparação adequada na Justiça internacional. “Não houve consentimento livre, prévio e bem informado por parte da população indígena e de outros habitantes das ilhas” sobre esses testes, disse ­Heike Alefsen, representante do Escritório Regional de Direitos Humanos das Nações Unidas no Pacífico, em comunicado publicado em 29 de agosto. De acordo com ele, o poder de todas as 67 explosões atômicas realizadas pelos EUA nas Ilhas Marshall foi 7.232 vezes superior àquela de Hiroshima. Foi como “lançar uma bomba atômica como aquela por dia, todos os dias, durante 20 anos”, comparou.

Do outro lado da Guerra Fria, a União Soviética detonou 456 bombas atômicas em Semipalatinsk, no Cazaquistão. A área de 18 mil quilômetros quadrados foi saturada com centenas de explosões atômicas, em testes realizados entre 1949 e 1989. Do total de detonações, 340 foram subterrâneas e 116, na atmosfera. Só com o fim da URSS, em 1991, é que o primeiro presidente cazaque da história, Nursultan Nazarbayev, fechou oficialmente o local de testes de Semipalatinsk e pôs de pé um programa de compensação financeira e apoio à saúde da população afetada por 40 anos de explosões nucleares.

Os arsenais são superiores àqueles de Hiroshima e Nagasaki. E os danos, elevados

Desde 1945, mais de 2 mil testes atômicos como aqueles do Novo México, das Ilhas Marshall e de Semipalatinsk foram conduzidos em todo o mundo, por ao menos nove Estados detentores desses arsenais: China, Coreia do Norte, França, Índia, Israel, Paquistão, Rússia, Reino Unido e EUA. “A palavra ‘teste’ não reflete suficientemente o horror desencadeado pela detonação de uma bomba atômica. Os ‘testes’ nucleares são explosões muito reais que liberam detritos radioativos globalmente, marcando paisagens e envenenando plantas, animais, oceanos, rios e seres humanos. Os legados radioativos dessas detonações nucleares persistem por gerações”, afirma Gustavo Vieira, professor de Relações Internacionais na Universidade Federal da Integração Latino-Americana e coordenador da Dhesarme – Ação Brasileira para o Desarmamento Humanitário. “A maioria desses países”, prossegue, “realizou testes em outras nações, sem o conhecimento ou o consentimento das populações locais, em atos que têm sido classificados como colonialismo ­nuclear”, uma expressão cada vez mais empregada para descrever essa situação.

Para pôr fim aos testes de armas atômicas em todo o mundo, foi lançado, em 1996, um tratado conhecido pela sigla em inglês CTBT (Tratado de Proibição Completa de Testes Nucleares). Até hoje, 187 países assinaram o documento, o que expressa um desejo de adesão plena, e 178 o ratificaram, o que significa ter aprovado a adesão em seus respectivos Parlamentos, com sanção presidencial em seguida. Este é, no entanto, um documento que, para entrar em vigor, exige a ratificação de um grupo específico de 44 Estados que, em 1996, possuíam reatores nucleares, fossem para fins civis ou militares. Nove integrantes desse grupo – China, Coreia do Norte, Egito, Índia, Irã, Israel, Paquistão, Rússia e EUA – assinaram o tratado, mas não o ratificaram ainda, e três deles – Índia, Paquistão e Coreia do Norte – nem sequer o assinaram.

Com o passar dos anos, o desenvolvimento de novas tecnologias fez com que muitos desses países trocassem as explosões feitas ao ar livre, na atmosfera, por detonações subterrâneas, mais discretas. Mas a ciência também avançou ao mesmo tempo no sentido de ­detectar essa ameaça sorrateira e, juntamente com o tratado contra os testes, foi criada uma organização, chamada CTBTO, que, com base numa rede global de cientistas e estações de monitoramento, tornou-se capaz de detectar a realização de qualquer explosão atômica, não importa a profundidade em que ocorra. A organização, que hoje conta com 300 profissionais permanentes, de 93 países, e com um orçamento anual que, em 2025, chegou a 139 milhões de dólares, realizou em Viena, na Áustria, na segunda semana de setembro, sua oitava cúpula, desde a fundação, em 1996.

Enquanto comunidades afetadas por testes atômicos realizados ao longo dos últimos 80 anos ainda lutam por reparação, verdade, memória e justiça, o tratado CTBT e os cientistas do CTBTO tentam pôr de pé instrumentos capazes de impedir que essa história siga a se repetir no futuro. O fato de seis das nove potências nucleares, incluindo as maiores delas, China, Rússia e EUA, terem assinado o tratado é algo que mostra disposição em aderir plenamente e banir os testes. O fato de ainda não terem ratificado o documento, é, porém, uma evidência de que a desconfiança mútua segue a cobrar um preço alto de comunidades sujeitas ao colonialismo nuclear.  •

Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Colonialismo nuclear’

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