Mundo
Civilização e barbárie
O discurso contundente e irrefutável do presidente Lula serve de contraponto ao pronunciamento infame de Trump


Sob qualquer ângulo, os discursos do presidente Lula e do mandatário dos Estados Unidos, Donald Trump, no primeiro dia da Assembleia-Geral das Nações Unidas demarcaram a fronteira entre a razão e a barbárie que define a batalha civilizatória deste início de século. O brasileiro falou por 19 minutos, dos 15 sugeridos pela ONU. O norte-americano devaneou por quase uma hora. O primeiro defendeu, de maneira contundente e irrefutável, a soberania, o multilateralismo, o meio ambiente e a paz. Foi interrompido por aplausos ao menos quatro vezes e acabou ovacionado no fim, à exceção das comitivas dos EUA, liderada pelo Secretário de Estado, Marco Rubio, e de Israel, confrontada com a denúncia de genocídio na Faixa de Gaza. O segundo perdeu-se em um monólogo confuso, provinciano, apologético e deturpado. Colheu raros e contidos apupos, basicamente da sua claque, e um silêncio constrangedor na maior parte do tempo. A longa exposição entrará para a história como a mais infame intervenção em 80 anos de reuniões na sede da organização em Nova York. O único momento surpreendente foram os elogios inesperados a Lula e o anúncio de uma possível reunião de ambos. “Tivemos uma química excelente”, declarou o republicano quase no fim de sua explanação. “Tivemos uma boa conversa e combinamos de nos encontrar na semana que vem, se isso for do interesse dele. Mas ele parece um cara muito legal. Na verdade, ele… Ele gostou de mim, eu gostei dele, mas… Eu só faço negócios com pessoas de quem gosto, não faço quando não gosto da pessoa. Quando não gosto, eu não gosto”. Resultado: a Bolsa brasileira subiu mais de 1% na terça-feira 23 e renovou o recorde, enquanto o dólar ficou abaixo de 5,30 reais.
Como de praxe, o Brasil abriu a assembleia. Lula proferiu um discurso contundente, mas sem excessos, e aproveitou para enviar diversos recados a Trump. “Mesmo sob ataque sem precedentes”, afirmou, o País irá “resistir e defender a sua democracia, reconquistada há 40 anos, depois de duas décadas de governos ditatoriais.” Criticou o tarifaço de 50% e as restrições impostas a autoridades brasileiras: “Não há justificativa para as medidas unilaterais e arbitrárias contra nossas instituições e nossa economia. A agressão contra a independência do Poder Judiciário é inaceitável. Falsos patriotas arquitetam e promovem publicamente ações contra o Brasil. Não há pacificação com impunidade”. Lembrou que, pela primeira vez na história, um ex-chefe de Estado foi condenado por atentar contra o Estado Democrático de Direito. “Foi investigado, indiciado, julgado e responsabilizado pelos seus atos em um processo minucioso. Teve amplo direito de defesa, prerrogativa que as ditaduras negam às suas vítimas. Diante dos olhos do mundo, o Brasil deu um recado a todos os candidatos a autocratas e àqueles que os apoiam. Nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis.” Afirmou ainda que a democracia é inseparável da redução das desigualdades e do acesso a direitos básicos. “A democracia falha quando fecha suas portas e culpa migrantes pelas mazelas do mundo.”
“Nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis”, afirmou o brasileiro, em claro recado ao republicano
O genocídio em Gaza e a guerra da Ucrânia também tiveram espaço no discurso de Lula. O brasileiro fez questão de cumprimentar o colega francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, pela liderança de um novo grupo que reconheceu o Estado da Palestina, que inclui Austrália, Bélgica, Canadá, Luxemburgo, Malta, Mônaco, Portugal e Reino Unido. Agora, 145 dos 193 integrantes da ONU endossam a Palestina como país. Em uma tentativa de boicotar a medida, a Casa Branca revogou os vistos de representantes da Autoridade Palestina e Organização para a Liberação da Palestina indicados para participar do evento. A medida arbitrária deu fôlego à proposta de transferir a assembleia para Genebra a partir do próximo ano. Em seu discurso, Trump disse que o reconhecimento é “um prêmio para o Hamas”.
Amparado pelo relatório de uma comissão independente da própria ONU, Lula não saiu pela tangente ao citar o massacre de palestinos. “Não há palavra mais apropriada para descrever o que está ocorrendo em Gaza do que genocídio.” E emendou: “Os atos terroristas cometidos pelo Hamas são inaceitáveis. O Brasil foi enfático ao condená-los, mas o direito de defesa não autoriza a matança indiscriminada de civis”. Na comitiva brasileira estavam Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, e Ricardo Lewandowski, ministro da Justiça, além da primeira-dama Janja da Silva. A esposa do presidente envergava, aliás, um casaco com bordado tradicional palestino. “O que está acontecendo em Gaza não é só o extermínio do povo, mas uma tentativa de aniquilamento de seu sonho de nação. Tanto Israel quanto a Palestina têm o direito de existir”, acrescentou o presidente brasileiro.
Ambiente. No plenário da ONU, Trump mereceu recepção morna. Do lado de fora, manifestantes esquentaram o clima – Imagem: Stephanie Keith/AFP
Trump falou em seguida. Reclamou do defeito na escada rolante no prédio da ONU e ameaçou o funcionário responsável pelo teleprompter, que falhou justamente na sua vez de falar – o norte-americano foi obrigado a ler o discurso no papel. Durante 57 minutos de frases soltas e erráticas, culpou a migração pelas mazelas do mundo, negou a crise climática e acusou as Nações Unidas de planejar a destruição do Ocidente ao fornecer ajuda humanitária a imigrantes ilegais. Também repetiu a falácia de ter encerrado sete guerras ao redor do planeta, em oposição à inoperância da organização multilateral, e voltou a reivindicar o Prêmio Nobel da Paz. “Sou muito bom de prever as coisas. Estive certo sobre tudo”, afirmou, sem modéstia e desconfiômetro.
Os desatinos se superavam a cada segundo. Para ele, o carvão é “bonito e limpo”, a energia renovável é um plano chinês para vender turbinas eólicas e painéis solares, o ar dos Estados Unidos é o mais limpo do planeta e a culpa da poluição dos oceanos é exclusiva dos países asiáticos. “As mudanças climáticas”, atacou a certa altura, “foram a maior fraude já perpetrada” criada por “gente estúpida.” Acusou os ambientalistas norte-americanos de pretender “matar todas as vacas” do país. O discurso sempre voltava, porém, ao mesmo ponto: a demonização dos imigrantes, acusados dos maiores flagelos possíveis e inimagináveis, de assassinatos cruéis a estupros em massa. “Seus países estão indo para o inferno (…) Se você não parar pessoas que você nunca viu antes, com quem você não tem nada em comum, seu país vai fracassar”, pregou a uma plateia atônita. Chega a ser comovente o esforço monumental, embora inútil, de jornalistas de todo o planeta para refutar, ponto a ponto, as fraudes, mentiras e imprecisões da retórica de Trump. Os meios de comunicação partiram de uma premissa errada. As únicas afirmações coerentes do presidente dos EUA em quase uma hora de absoluto delírio foram o bom dia inicial e a despedida. O resto… A evidente falta de entusiasmo dos presentes após os torturantes 57 minutos contrastou com o vigor da manifestação do lado de fora do prédio da ONU, na qual tremulavam bandeiras da Palestina e se viam cartazes com os seguintes dizeres: “Trump é a emergência” e “Pró-democracia anti-Trump”. Cerca de 50 manifestantes foram presos, segundo o relato dos organizadores ao jornal The New York Times.
“Tivemos uma química excelente”, disse o republicano a respeito de Lula
O afago do republicano a Lula pegou de surpresa tanto a comitiva brasileira quanto os representantes do governo norte-americano presentes na assembleia. A troca de olhares entre os diplomatas dos EUA evidenciou o desconforto. Os brasileiros, por sua vez, louvaram a iniciativa de Trump, mas preferem tratar com cautela a proposta. O Itamaraty e o Palácio do Planalto querem evitar qualquer armadilha, dado o histórico do magnata de humilhar interlocutores em visita à Casa Branca, como fez com Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, e Ciryll Ramaphosa, da África do Sul. Em princípio, Lula tende a aceitar uma primeira conversa por telefone ou videoconferência, limitada a assuntos comerciais e com uma pauta previamente definida. Os próximos passos da relação dependeriam do desenrolar do primeiro contato.
Antes de retornar ao Brasil, na noite da quarta-feira 24, Lula reuniu-se com a Rainha Silvia, da Suécia. “Tenho um pé de jabuticaba na minha casa. O presidente me presenteou com jabuticabas, o que achei muito bonito”, afirmou a rainha a repórteres ao fim do encontro. •
Publicado na edição n° 1381 de CartaCapital, em 01 de outubro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Civilização e barbárie’
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