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Círculo vicioso

Sucesso político e fracasso econômico: nas urnas a democracia argentina encara seus fantasmas

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Outsider. O voto no “liberal libertário” Javier Milei (ao centro) é profundamente anti-Estado e anti-institucional – Imagem: Augustin Marcarian/AFP
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A Argentina tem uma trajetória singular no campo das democracias sul-americanas. Com uma transição por colapso – vista, naquele momento, com reticências por cientistas políticos –, o país teve diversos governos exitosos no que diz respeito a uma lógica de construção democrática. O primeiro diferenciou-se por colocar, no centro das suas ações, o julgamento das graves violações dos direitos humanos ocorridas na ditadura. Desde os primeiros anos de redemocratização, o descontrole da economia esteve em pauta. Esse parece ser um bom resumo da democracia argentina: sucesso político e fracasso econômico. A eleição de 2023, com o primeiro turno previsto para 22 de outubro, pode significar o fim dessa trajetória no que diz respeito ao sucesso democrático.

Os primeiros governos argentinos após a democratização foram marcados por dois fenômenos: a ausência de uma nova Constituição e um ciclo perverso entre governos peronistas e não peronistas que impediu os presidentes não peronistas de completarem seus mandatos. O primeiro governo peronista exitoso, o de Carlos Menem, criou condições para uma solução efetiva para o primeiro problema ao incorporar, na revisão constitucional de 1994, os principais tratados de direitos dos quais o país era signatário. Abriu-se, então, uma via para a ampliação de direitos, como a adoção de filhos por casais gays e o aborto. O segundo elemento, a continuidade da tensão entre peronistas e não peronistas, resolveu-se apenas neste século, em 2019, quando Mauricio Macri completou seu mandato. Estabilizou-se, aí, um dos principais déficits da democratização argentina.

Quando pensamos a situação econômica do país, vemos onde residem os riscos para a democracia. Depois de um período de recuperação econômica que se seguiu ao curralito, isto é, ao bloqueio das contas bancárias pelo liberal Domingo ­Cavallo, a economia argentina mergulhou em uma fase de péssima performance econômica. Nos últimos dez anos, o país cresceu em apenas seis. No governo de Alberto ­Fernández, os últimos quatro anos foram de recessão. Com 80% de desaprovação, o peronista desistiu de buscar a reeleição e abriu caminho para que Sergio Massa, seu ministro da Economia, entrasse na disputa. Mas é justamente a política econômica, reprovada por 88%, que os argentinos identificam como principal problema do país, à frente de todas as outras questões. A inflação, nos oitos primeiros meses deste ano, bateu a marca dos 80%, atingindo 124% na variação anual. Trata-se do maior transtorno enfrentado pelos argentinos, independentemente do partido com o qual se declarem identificados.

Como consequência da performance econômica desastrosa, os níveis de confiança nas instituições e de otimismo com o futuro caíram drasticamente. A concretude do principal problema a ser combatido pelo próximo presidente é latente: o descontrole dos preços mina a esperança dos argentinos. Às vésperas da escolha de um novo presidente, o nível de desencanto chama a atenção: 84% dos cidadãos acreditam que a situação do país piorou no último ano e a maior parte deles, 38%, não acredita que vá melhorar no curto prazo, segundo pesquisa realizada pela Universidade de San Andrés. A satisfação dos argentinos com o andamento geral do país é de 11%, o pior patamar desde 2016.

As eleições primárias argentinas, ocorridas em agosto, têm uma estrutura diferente das americanas e considera, antes, a preferência da população. O favorito foi o autodenominado “liberal libertário” ­Javier Milei, um político que chamou atenção no fim de 2022, mas pareceria não ter chances de alcançar o primeiro lugar. Sua liderança provocou um terremoto na política ao romper com padrões fortemente estabelecidos. Segundo o cientista político Martín D’Alessandro, foi o pior resultado em 80 anos para os peronistas, a coluna vertebral da democracia argentina. Mas o terremoto não parou por aí: o voto em Milei é um voto profundamente anti-Estado e anti-institucional.

A preferência do povo pelo regime democrático caiu de 73% para 62% em quatro anos

Diante do fracasso das duas principais correntes políticas no país, uma terceira cresce nas fissuras do embate democrático. A avaliação positiva de Javier Milei cresceu em torno de 13 pontos. Mesmo sendo visto pelos eleitores como violento e instável emocionalmente, ele ofereceu uma cartela de propostas que vão ao encontro das convicções do eleitorado. Assim como a imagem construída por Bolsonaro no Brasil, ele se apresenta como um outsider que chegará para solucionar problemas enraizados. A pesquisa “A Cara da Democracia”, elaborada pelo Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação, realizada na Argentina em parceria com a consultoria Poliarquia, indica que o país vizinho, assim como o Brasil, vive um cenário de alta aversão ao funcionamento das instituições políticas. Para 78% dos argentinos, os políticos só defendem seus próprios interesses e uma taxa semelhante desconfia dos partidos. A parcela da população que se considerava insatisfeita com o funcionamento do regime democrático em 2022 subiu 10 pontos porcentuais (de 56% para 66%) em quatro anos. A preferência pela democracia sobre outras formas de governo caiu de 73% para 62%.

Assim, a Argentina corre o risco nesta eleição de se enredar na espiral que já envolveu outros países da região, como o Brasil, parcialmente recuperado da aventura bolsonarista, o Peru, abalado por sucessivos impeachments, e o Chile, paralisado entre a Constituição que não querem e a Constituição que não são capazes de compactuar. Este é um caminho que sabemos como começa, com a rejeição de todas as instituições democráticas. Só não sabemos como termina. •


*Leonardo Avritzer é professor titular de Ciência Política da UFMG, doutor em Sociologia Política pela New School for Social Research e coordenador do INCT-IDDC. Andressa Rovani é jornalista e doutoranda em Ciência política pela Unicamp.
O Observatório das Eleições na Argentina é um projeto internacional organizado pelo Instituto da Democracia, sediado na UFMG e coordenado por Avritzer. Esse projeto envolve uma equipe de pesquisadores de várias instituições e universidades, tanto no Brasil quanto na Argentina, e tem como principal objetivo acompanhar as eleições que estão programadas para ocorrer no dia 22 de outubro no país vizinho.

Publicado na edição n° 1281 de CartaCapital, em 18 de outubro de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Círculo vicioso’

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