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Choque de realidade

Perto do segundo aniversário da invasão russa, os ucranianos trocam o otimismo pelo desalento

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Acuado. Sem o apoio financeiro dos EUA e da União Europeia, Zelensky, presidente ucraniano, assiste impotente ao avanço das tropas russas na região de Donetsk – Imagem: Presidência da Ucrânia e AFP
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Perto da linha de frente na região de Donetsk, na Ucrânia, uma estrada esburacada passa por vilarejos quase desertos. Ela se transforma numa trilha lamacenta que serpenteia pelos campos e, finalmente, chega a uma base militar escondida numa floresta. Lá, enquanto uma chaleira fervia sobre um fogareiro a gás, um soldado esgotado de 39 anos, que quis ser citado apenas pelo apelido, Titushko, falou sobre os problemas de combater os russos com uma séria escassez de munição, enquanto o som de tiros de posições próximas ecoava pela base.

Em novembro, os homens de ­Titushko, parte de uma divisão de artilharia da Primeira Brigada de Tanques da Ucrânia, recebiam cerca de 300 projéteis a cada dez dias, mas agora estão limitados a dez disparos por dia. “Naquela época podíamos mantê-los alertas, atirar o tempo todo, mirar sempre que víamos um alvo. Agora disparamos exclusivamente para defesa”, lamentou. As escassas reservas de munições na base são parcialmente constituídas por munições iranianas, parte de um carregamento apreendido no Golfo Pérsico, aparentemente a caminho dos rebeldes houthis no Iêmen. Elas são “extremamente problemáticas e não funcionam bem”, afirmou outro soldado da base.

Em toda a linha de frente a Ucrânia está na defensiva, com falta de munições e de soldados. No sábado 17, o comando militar da Ucrânia anunciou que estava em processo de retirada de Avdiivka, a leste, na região de Donetsk, primeiro grande ganho territorial da Rússia desde maio do ano passado. As autoridades ucranianas descreveram a perda como uma consequência direta da escassez de munições fornecidas pelo Ocidente. As notícias sombrias, às vésperas do segundo aniversário da invasão em grande escala pela Rússia, são mais um sinal de que o terceiro ano da guerra poderá ser o mais difícil para a Ucrânia. O clima é muito diferente de um ano atrás, quando, no meio do horror, os ucranianos permaneciam animados pela forte consolidação da sociedade nacional e aguardavam com entusiasmo a rápida libertação dos territórios ocupados pela Rússia.

Há crescentes divisões políticas e sociais à medida que o desfecho do conflito parece mais distante

Em Kiev, a historiadora cultural ­Natalia Kryvda atribuiu a notável união no primeiro ano da guerra ao passado da Ucrânia como nação desprovida de infraestrutura estatal. “Como temos uma longa história de nação sem Estado, organizamos essas ligações horizontais para iniciar a defesa. Os cidadãos assumiram a responsabilidade, não esperaram ordens.” Naqueles primeiros meses, quase todos os segmentos da sociedade se uniram, disse Kryvda, para criar uma nova e orgulhosa identidade ucraniana, após anos de depreciação do conceito por parte da Rússia. “Foi algo muito bonito, mas estou preocupada que essa união tenha começado a ruir agora”, acrescentou.

No sábado 17, o presidente do país, ­Volodimir Zelensky, lembrou na conferência de segurança de Munique o quanto a sociedade ucraniana alcançou nos últimos dois anos: “Resistimos há 724 dias. Vocês teriam acreditado, há 725 dias, que isso seria possível?” Entretanto, com o aumento das baixas, as fileiras do exército e os estoques de artilharia esgotados e a ajuda financeira dos Estados Unidos estagnada – e com a perspectiva potencialmente devastadora de uma presidência de Donald Trump no horizonte –, os ucranianos saúdam o segundo aniversário receosos sobre o que o futuro lhes reserva, bem como com divisões cada vez mais visíveis na sociedade.

Na base na região de Donetsk, ­Titushko falou sobre o mal-estar que sentiu nas duas recentes semanas de licença em casa. Em tempos de paz, ele trabalhava como motorista de colheitadeira na região de Chernihiv, no norte da Ucrânia, antes de se alistar para lutar nos primeiros dias após a invasão, em fevereiro de 2022. Titushko passou metade de janeiro deste ano em casa, sua primeira folga da frente em mais de um ano, proporcionando o alívio necessário da artilharia noturna e dos ataques aéreos, do frio do inverno e dos ratos gigantes que tornam difícil suportar a vida nas trincheiras.

Em vez de considerar a experiência revigorante, Titushko achou, no entanto, duro de engolir a visão de civis a desfrutar uma vida aparentemente normal nos cafés e restaurantes, e as perguntas irritantes que faziam quando viam seu uniforme. “Eles perguntam coisas estúpidas. ‘Como é lá? Quantos russos você matou? Quantos dos nossos morreram?’”, relembra. O soldado olhou para a vida em seu país e se perguntou por que os homens que via nas ruas não estavam na frente, com ele. “Realmente, não entendo isso. Há trabalho suficiente aqui, mesmo que você não queira disparar uma arma. Você pode cavar uma trincheira, preparar refeições. Todos ajudaram no início, todos se preocuparam, mas agora é um momento diferente. Você olha para esses e tem vontade de dizer: ‘O que vocês farão se os russos voltarem e vierem para suas cidades? Você acha que eles vão distribuir pirulitos?’”

Ressentimento. Soldados na linha de frente reclamam de quem tenta levar uma vida normal nas cidades – Imagem: Genya Savilov/AFP e Anatolii Stepanov/AFP

Nesta fase da guerra, encontrar ucranianos dispostos a lutar está cada vez mais difícil. Uma coisa era alistar-se quando parecia que o exército ucraniano poderia avançar e retomar todo o território perdido de forma rápida e triunfante. Hoje, o cálculo parece diferente.

Kiev tem mobilizado homens para o esforço de guerra constantemente no último ano, e há planos para adicionar mais centenas de milhares no próximo. Alguns estão dispostos a ir, caso sejam chamados, mas um número maior fica escondido em casa, com medo de receber uma intimação na rua, ou tenta fugir do país. “A mobilização é impopular na sociedade. O instinto de autopreservação, a compreensão de que a guerra vai se arrastar, ninguém quer arriscar a vida dos seus entes próximos”, afirma o analista político Volodimir Fesenko, em Kiev. “Por outro lado, não há dúvida de que precisamos de mobilização, portanto é uma situação difícil.” Fesenko disse esperar que as autoridades resolvam o problema mês a mês, em vez de mobilizar um grande número de reservistas ao mesmo tempo. “Os recursos para convocar 500 mil de uma só vez simplesmente não existem, e isso também afetaria duramente a economia, pois existe um problema com as reservas de mão de obra”, explica.

Há ainda a questão de quão bem os soldados recém-mobilizados podem lutar. Uma fonte do exército disse estarem em curso planos para aumentar o período de treinamento de um para dois meses, mas ainda não é tempo suficiente para preparar-se para a guerra de trincheiras. “É mais uma questão de problemas psicológicos do que de habilidades”, analisa Valentyn, vice-comandante da divisão de artilharia. “Os civis não têm experiência de estar na frente de batalha, de ficar longe de casa e dos entes queridos por tanto tempo.”

Milhões de ucranianos que não estão em combate ajudam no esforço de guerra com trabalho voluntário ou doações, mas a divisão entre quem teve experiências muito diferentes ao longo dos últimos dois anos torna-se mais clara. Anastasiia Shuba, advogada que faz parte do conselho anticorrupção do Ministério da Defesa – e que frequentemente viaja para a frente como voluntária para levar mantimentos às tropas e visitar seu marido, um oficial comandante no leste –, disse que cortou o contato com amigos que pareciam indiferentes ao esforço de guerra. Após visitas à linha de frente, ela considera chocante o contraste em Kiev, onde, apesar dos recorrentes ataques de mísseis russos, lojas e restaurantes ­continuam abertos e as ruas estão movimentadas. “Meu marido me diz: ‘Estamos aqui exatamente para que todos possam viver normalmente’. Ele me diz para ir às compras, para tirar férias na praia com o nosso filho”, conta. “Mas é difícil. É claro que nem todos podem lutar ou ser voluntários, e precisamos de uma economia funcional. Mas com o país numa situação tão difícil só um parasita continuaria a viver sem pensar em como ajudar.”

Menos um. Navalny é o oitavo crítico de Putin com proeminência internacional a morrer – Imagem: Karen Minasyan/AFP

Shuba acrescentou, no entanto, que se recusa a aceitar o pessimismo prevalecente sobre os rumos da guerra. “Se você acreditasse em tudo que lê no ­TikTok e no Instagram, a única opção seria se cobrir com um cobertor e rastejar até o cemitério. Ser pessimista consome muita energia, e eu posso usar essa energia em coisas úteis. Se eu realmente começar a acreditar que vamos perder, vou desmoronar e não conseguirei me levantar novamente.”

Existem, certamente, alguns pontos positivos no meio da escuridão – o recente domínio militar da Ucrânia no Mar Negro, apesar de não ter uma marinha, e suas audaciosas operações especiais atrás das linhas russas, bem como o grande aumento da produção doméstica de drones, que têm desempenhado um papel fundamental na luta. Mas o cenário internacional torna difícil confiar nas perspectivas a longo prazo de libertação do território. A União Europeia superou finalmente a oposição de Viktor Orbán, da Hungria, e ratificou um pacote de financiamento de 50 bilhões de euros, mas um enorme pacote dos Estados Unidos continua paralisado. Mesmo se aprovado, é provável que Trump mude o tom do debate apenas por se tornar o candidato republicano, quanto mais o presidente.

No terceiro ano da guerra, a cena política interna também poderá sofrer uma fratura. A união do primeiro ano tem se dissolvido progressivamente nos últimos meses, com os opositores políticos de Zelensky tornando-se cada vez mais veementes e a sensação de que a política está de volta. O cansaço tão visível na sociedade é palpável nos corredores do poder. “Todo mundo está exausto, física e emocionalmente. O pavio de todos está muito curto”, descreve um diplomata baseado em Kiev, sobre conversas com líderes políticos.

Normalmente, uma eleição presidencial seria marcada para esta primavera, entre fim de março e junho, embora haja um amplo consenso de que sua realização neste momento é impossível. Mas existe a preocupação de que Zelensky não tenha encontrado uma nova forma de governar após o período inicial de consolidação, a fim de trazer mais gente para o seu lado. “Existem apenas duas ­pessoas que tomam decisões neste país”, disse outro diplomata, referindo-se a Zelensky e a seu chefe de gabinete, Andriy Yermak.

Por ora, a volta à mesa de negociações é rechaçada pelos dois lados

A demissão do chefe do exército ­Valerii Zaluzhnyi, no início deste mês, foi amplamente vista como parcialmente motivada pelos altos índices de popularidade do militar. A mudança ocorreu sem protestos significativos por enquanto, com a maioria dos ucranianos compreendendo que a turbulência interna só favoreceria a Rússia, mas muitos veem Zaluzhnyi como um potencial futuro desafiante de Zelensky.

À medida que se aproxima o aniversário, em 24 de fevereiro, a equipe de ­Zelensky fará questão de lembrar aos líderes ocidentais os primeiros dias da guerra, quando as tropas russas atacaram Kiev e muitos no Ocidente assumiram que os dias da Ucrânia como Estado independente estavam contados. Apesar da lenta resposta ocidental, a Ucrânia manteve-se firme, e poucos acreditam agora que a Rússia tenha capacidade para lançar um novo ataque à capital ucraniana.

Numa recente manhã ventosa, não muito longe da fronteira da Ucrânia com a Bielorrússia, escavadoras retiravam terra lamacenta do solo e um grupo de homens trabalhava com pás para ampliar uma rede de robustas trincheiras e fortificações de concreto como parte de uma formidável nova linha de defesa. Há dois anos, colunas de blindados russos percorreram essa área e encontraram pouca resistência, enquanto rumavam para Kiev. “Havia alguns caras com Javelins, mísseis antitanque, na fronteira, mas, fora isso, eles simplesmente passaram direto”, disse Oleksandr, soldado ucraniano que trabalha nas fortificações. “Isso não vai acontecer de novo.”

A derrota total da Ucrânia parece agora um sonho impossível para Vladimir Putin, mas a vitória total ucraniana, incluindo a recuperação da Crimeia, que a Rússia anexou em 2014, é igualmente mais difícil de imaginar a curto prazo. As negociações com a Rússia têm sido um tema tabu, principalmente porque ninguém acredita que Moscou manteria qualquer acordo e simplesmente o usaria como pausa para respirar antes de pressionar novamente. Lutar indefinidamente também é pouco sustentável. “Se conseguirmos sobreviver no próximo ano, provavelmente seremos forçados a negociar algum tipo de cessar-fogo”, disse Fesenko.

Para muitos em combate, concordar com uma paz frágil e imperfeita seria uma concessão impensável depois dos esforços e perdas dos últimos dois anos. Na linha de frente, Titushko disse que a ideia de voltar para casa, para uma vida pacífica, apenas para ser convocado novamente quando a Rússia recomeçasse as hostilidades, seria demais para suportar. “Em 2014, pensamos que tudo estava acabado e eles voltaram. Agora temos de acabar com eles de vez”, acredita. •

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.


MARCADO PARA MORRER

A demora em liberar o corpo de Navalny alimenta as especulações
por Sergio Lirio

Menos um. Navalny é o oitavo crítico de Putin com proeminência internacional a morrer – Imagem: Karen Minasyan/AFP

Nem as tundras de Iamália se surpreenderam com o anúncio pelas autoridades russas, na sexta-feira 16, da “súbita” morte de Alexei ­Navalny, ferrenho opositor de Vladimir Putin. Após sobreviver a um envenenamento em 2020, o ativista de 47 anos era um mujique marcado para morrer. Ao contrário de outros adversários de ­Putin, o advogado que flertava com movimentos supremacistas russos e se notabilizou por denunciar a corru­pção do círculo do poder decidiu voltar ao país e enfrentar os adversários de perto. Preso em 2021, foi condenado a penas somadas de 30 anos, uma delas por extremismo. No ano passado, acabaria transferido para o Ik-3, presídio na Sibéria reconhecido pelas condições duras de sobrevivência, no complexo chamado de “Lobo Polar”, em nada a dever à prisão descrita por Dostoievski em Recordações­ da Casa dos Mortos.

Os legistas ainda não revelaram a causa da morte. Segundo os relatos oficiais, Navalny teve um mal súbito durante uma caminhada e as tentativas de reanimá-lo foram infrutíferas. A polícia impediu a mãe do ativista, ­Lyudmila Navalnaya, e os ­advogados da família de verem o corpo até a conclusão de nova autópsia. “Não quero ouvir nenhuma condolência.

Nós o vimos na prisão no dia 12 de fevereiro, em uma reunião. Ele estava vivo, saudável e feliz”, denunciou Lyudmila. Em um vídeo divulgado na segunda-feira 19, a viúva Yulia Navalnaya acusou diretamente Putin de ordenar um novo envenenamento do marido e de tentar eliminar as provas do assassinato, além de prometer dar continuidade à militância do falecido. “Falaremos a respeito em breve. Descobriremos quem exatamente executou esse crime e como.

Vamos citar os nomes e mostrar os rostos.” ­Circulam boatos de que agentes secretos a serviço do ­Kremlin visitaram a cadeia na véspera da morte.

Por todo o país, a polícia tem reprimido protestos que pedem a investigação da morte ou homenageiam o morto. Na cidade siberiana de Novosibrisk, o monumento às vítimas da repressão política está cercado por um cordão de isolamento para impedir manifestações e gestos de solidariedade ao ativista.

Desde a ascensão de Putin ao poder, há cerca de duas décadas, Navalny é o oitavo crítico proeminente a morrer, assassinado ou em circunstâncias misteriosas. Integram a lista, entre outros, Boris Nemtsov, ex-vice-premier do governo de Boris Yeltsin,

a jornalista Anna ­Politkov­skaia e o espião Alexandre ­Litvinenko, envenenado em um ­hotel londrino. O Kremlin não respondeu às acusações de familiares e de líderes internacionais. Limitou-se a informar que as investigações sobre as circunstâncias da morte estão em curso.

Publicado na edição n° 1299 de CartaCapital, em 28 de fevereiro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Choque de realidade’

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