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China x EUA x Rússia: o ‘1984’ de Orwell ganhará vida em 2021?

Com Putin e Xi em uma aliança cada vez mais íntima, a gestão não testada de Joe Biden nos Estados Unidos pode estar à beira do abismo

Voluntário ucraniano do batalhão Azov, em veículo blindado, segue para Novoazovsk (Foto: Alexander KHUDOTEPLY/AFP/Getty Images)
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por Simon Tisdall

Talvez seja mera coincidência que a Rússia estivesse aumentando a pressão militar contra a Ucrânia na semana passada, ao mesmo tempo em que a China fazia ameaças ruidosas em torno de Taiwan. Na primavera, para mutilar Tennyson, a imaginação de um jovem volta-se para a guerra — e essa máxima distorcida pode até se aplicar a bandidos mais velhos como Vladimir Putin e Xi Jinping.

A Rússia e a China estão se movendo para uma aliança ainda mais próxima. Embora não haja evidência de conluio direto sobre a Ucrânia e Taiwan, os presidentes Putin e Xi sem dúvida estão cientes dos respectivos atos, que têm efeito idêntico, mutuamente reforçador: colocar o vento contra o governo inexperiente de Joe Biden nos Estados Unidos.

O que se desenrola agora poderia ser retratado como a realização definitiva da visão de pesadelo de George Orwell em sua novela distópica 1984, de um mundo dividido geográfica, política e militarmente em três superestados rivais: Oceania (América do Norte e Grã-Bretanha), Eurásia (Rússia e Europa) e Lestásia (China).

A publicação do livro de Orwell, em 1949, coincidiu com a formação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), liderada pelos Estados Unidos, e a emergência da União Soviética de Joseph Stalin como potência nuclear. Também viu a proclamação da República Popular da China por Mao Tse-tung. Mas esses foram outros tempos.
A previsão de Orwell de um confronto global tríplice e interminável se mostrou prematura. A China precisava de tempo para se desenvolver. A União Soviética acabou implodindo. Os Estados Unidos, declarando um momento unipolar, reivindicaram a vitória. Mas hoje, por certos critérios, o mundo tripartite de Orwell está finalmente passando a existir. 2021 é o novo 1984.

Se a China e a Rússia estão atualmente se unindo contra os Estados Unidos e seus subordinados, é o que se espera em um mundo onde nenhuma superpotência consegue dominar as outras duas. Em 1972, Richard Nixon buscou a ajuda da China contra os soviéticos. Talvez um dia os Estados Unidos e a Rússia se juntem contra Pequim.
Defensores de um mundo multipolar dirão que isso é simplista demais, e que o equilíbrio estratégico é mais sutil e complexo. Diga isso à população da região de Donbas, no leste da Ucrânia, e da Crimeia ocupada, que enfrentam uma nada sutil concentração militar russa na “linha de contato”.

O consenso entre analistas é que Putin não está prestes a invadir. Então o que ele está fazendo? Os apologistas sugerem que ele foi provocado por um decreto ucraniano no mês passado declarando a retomada da Crimeia, ocupada pela Rússia em 2014, um objetivo oficial do governo — e por um discurso renovado de a Ucrânia entrar para a Otan.

Uma explicação mais banal é que Moscou está pressionando Kiev para romper o impasse no chamado processo de paz de Minsk — depois que o último cessar-fogo em Donbas fracassou. Putin desfrutou uma grande, mas passageira, melhora nas pesquisas depois da anexação da Crimeia. No mês passado, ele usou um comício televisivo marcando seu sétimo aniversário para recuperar a popularidade perdida.

O pesadelo orwelliano para Biden e o Ocidente seria uma invasão simultânea da Rússia na Ucrânia e um ataque da China a Taiwan

Parece que não funcionou. Os russos estão preocupados com a pandemia de coronavírus (e a incompetência da reação oficial), a queda da renda e o agravamento da previsão socioeconômica. Mais que nunca, o projeto de Putin de restaurar o império soviético parece irrelevante, especialmente para pessoas mais jovens.

Putin está sob fogo doméstico de apoiadores do muito perseguido ativista de oposição Alexei Navalny, e de denúncias de corrupção. Somente 32% dos russos confiam no presidente, segundo uma pesquisa recente do Centro Levada. Vista dessa forma, a escalada na Ucrânia parece uma distração calculada com fins políticos internos.
Mas Putin também pode estar deliberadamente testando a decisão norte-americana e europeia. Ele não terá esquecido que George W. Bush prometeu apoio eterno ao governo democrático eleito na Geórgia em 2005, depois recuou quando a guerra irrompeu na Rússia em 2008.

Como notou o analista Ted Galen Carpenter na semana passada, a Casa Branca de Biden igualmente afirmou “apoio inabalável dos Estados Unidos à soberania e integridade territorial da Ucrânia diante da atual agressão da Rússia em Donbas e na Crimeia”. Isto parece, na melhor das hipóteses, um refém da sorte, e na pior, uma cruel enganação.
“Os paralelos entre o excessivo encorajamento de Washington à Ucrânia e a confusão de Bush com relação à Geórgia são inexplicáveis e assustadores”, escreveu Carpenter. Os Estados Unidos e a Otan não iriam à guerra com a Rússia pelo leste da Ucrânia, assim como não iriam para salvar a Ossétia do Sul, ele sugeriu. E se o fizessem, bem, seria exatamente a terceira guerra mundial.

É aí que reside o verdadeiro perigo global — na brecha difusa entre palavras e atos na luta trilateral cada vez mais intensa entre superpotências. Putin, instigado pelo insulto de “assassino” de Biden e diversas disputas intratáveis, denunciará o blefe do presidente americano? E Xi o fará, do outro lado do mundo?

O líder chinês mal-humorado parece um homem inclinado a meditações. Ele sofreu muito desprezo do Ocidente, incluindo acusações de genocídio em Xinjiang, brutalidade em Hong Kong e agressão nos mares ao redor da China. O que o move agora, enquanto suas forças sitiam Taiwan?

Uma resposta é que Xi também pode pretender desviar a atenção de problemas domésticos. Talvez ele enfrente desafios invisíveis com o Partido Comunista chinês. Mais provavelmente, ele gostaria de marcar o centenário da fundação do PCCh em julho finalmente conquistando o último reduto dos nacionalistas de Chiang Kai-shek.

A reunificação de Taiwan selaria o legado de Xi. Laços pessoais, estratégicos e militares cada vez mais próximos com a Rússia de Putin significam que ele não enfrentaria reação desse setor, e teria até certo aplauso. Os taiwaneses prometem lutar, mas não podem vencer sozinhos. Só os americanos realmente impedem o caminho dele.
Xi está simplesmente iludindo os “proles” de Washington? Ou ele os desafiará e fará um avanço a Taiwan em breve? O pesadelo orwelliano para Biden e o Ocidente seria uma invasão simultânea da Rússia na Ucrânia e um ataque da China a Taiwan.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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