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Cenário aberto

A Frente Ampla triunfa nas urnas, mas enfrentará a união da direita no segundo turno

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Tira-teima. O progressista Yamandú Orsi enfrentará Álvaro Delgado, o candidato do presidente Lacalle Pou – Imagem: Redes sociais
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Com a expressiva participação de 88% dos cidadãos aptos a votar, os uruguaios reforçaram a tradição de levar a eleição presidencial para o segundo turno. Por ora, os ventos parecem soprar a favor de Yamandú Orsi, ex-governador de Canelones e candidato da Frente Ampla do ex-presidente Pepe Mujica. No domingo 27, ele obteve 43% dos votos, com larga vantagem em relação ao segundo colocado, Álvaro Delgado, do governista Partido Nacional, que teve 26%. Além disso, a aliança progressista de Orsi venceu em 12 dos 19 departamentos do país, superando os adversários até mesmo em localidades do interior que outrora eram consideradas bastiões conservadores, como as províncias de Durazno e ­Tacuarembó. Ainda assim, uma união da direita na etapa decisiva mantém a disputa aberta.

Mesmo com a saúde debilitada e aos seus 89 anos, Mujica teve um papel decisivo na campanha. Em tratamento contra um câncer no esôfago, o ex-guerrilheiro tupamaro tem participado dos comícios da coalizão progressista, enfatizando que esta eleição marcará sua “despedida da política”. A carga emocional trazida pelas aparições públicas do ex-presidente, uma referência para a esquerda em toda a América Latina, ajuda a explicar o expressivo comparecimento dos eleitores nas urnas, mas não só, avalia a escritora e cineasta Veronica Pamoukaghlian. “Por aqui, os partidos têm tradição e as pessoas seguem uma ideologia, mas a vida também está mais difícil. Tudo ficou mais caro nos últimos anos, isso tem um peso na decisão dos eleitores. Além disso, há muitos casos de corrupção que precisam ser esclarecidos”, sublinha a analista, citando o documentário El Facilitador, que aborda algumas das mais graves acusações de irregularidades cometidas por integrantes da atual gestão.

A Frente Ampla também triunfou nas eleições legislativas. No Senado, conquistou 16 das 30 vagas em disputa. Na Câmara, formou a maior bancada, com 48 deputados, e por pouco não conquistou a maioria entre as 101 cadeiras que compõem a casa. “Estamos bem posicionados, mas precisamos manter a presença nas ruas. Nosso plano administrativo foi elaborado com diálogo e autocrítica. ­Reconstruímos o vínculo com as organizações sociais e as comunidades dos territórios e fomos uma oposição construtiva, atuando sem golpes baixos e com a responsabilidade que momentos como a pandemia e a crise hídrica exigiam. A população reconheceu e valorizou essa postura”, avalia o economista Juan Fernández, que concorreu pela coligação progressista em uma das listas para deputado.

Apesar dos reveses, Delgado aposta em uma transferência massiva de votos em seu favor na etapa decisiva. “Somos o projeto mais votado”, afirmou, referindo-se à soma dos sufrágios obtidos pela direita, incluindo os dos partidos Colorado e Cabildo Abierto, que também integram a base do governo de Luis ­Lacalle Pou, mas lançaram candidatos próprios. “Temos uma administração provada que trouxe crescimento, transparência nos gastos, o grau de investimento mais relevante da região e emprego recorde. Precisamos seguir nessa linha, contrastando com o retrocesso que configura as propostas dos nossos oponentes”, emenda Álvaro Viviano, deputado do Partido Nacional, confiando em uma virada do correligionário.

Aos 89 anos e com a saúde debilitada, Pepe Mujica teve papel decisivo na campanha de Orsi, que obteve 43% dos votos no domingo 27

Na avaliação da historiadora Aida ­López, a grande maioria dos eleitores de Andrés Ojeda, do Partido Colorado, que terminou a disputa em terceiro lugar, com 16% dos votos, tende mesmo a migrar ­para Delgado. “O votante colorado é de direita, no máximo de centro-direita. Eles estarão junto aos blancos (do Partido ­Nacional). A Frente Ampla deve focar em não perder os eleitores conquistados”, opina. Já a professora Paula Batalla considera que parte desse contingente pode ter outro destino. “Existe uma porcentagem de colorados e simpatizantes convencida da importância da pluralidade e do protagonismo do partido na construção da nossa democracia que não deve acompanhar a direita mais tradicional. A Frente Ampla pode, sim, estabelecer alianças com novos setores.”

Há ainda os indecisos, aqueles que avaliam as opções até as vésperas da votação, caso de Williams Manolo, trabalhador da construção que ainda não havia definido seu voto faltando dois dias para o primeiro turno. “A Frente Ampla esteve 15 anos no comando, oscilando entre alguns anos bons e outros ruins. Tenho amigos que defendem seu retorno e outros que preferem a continuidade da direita. Vou decidir na última hora”, confidenciou à reportagem. Morador de Ciudad del ­Plata, a 30 quilômetros da capital, ele considera que, no Uruguai, se vive melhor do que no Brasil, onde residem seu pai e dois irmãos. “Economicamente, aqui parece melhor. E temos uma boa educação, tenho uma filha na escola pública.”

Outro ponto ressaltado pelos conservadores foi a manutenção da reforma previdenciária de Lacalle Pou, que aumentou a idade mínima da aposentadoria para 65 anos, desvinculou o valor das pensões do salário mínimo e manteve os fundos privados. Em plebiscito, o argumento de um possível colapso das contas públicas em uma nação de população envelhecida pesou para que 60% dos eleitores apoiassem as mudanças.

Por outro lado, em nova vitória da Frente Ampla, a população uruguaia decidiu que a polícia deveria continuar proibida de entrar na casa dos cidadãos e em outros ambientes privados após as 19 horas. A proposta era impulsionada especialmente por setores da extrema-direita, que defendem maior autonomia das forças de segurança para o combate ao crime organizado, preocupação crescente entre a sociedade, mas não a ponto de ameaçar a garantia constitucional da inviolabilidade dos domicílios.

O cenário aponta para uma disputa acirrada, assim como a de cinco anos atrás, quando Lacalle Pou venceu por uma diferença de menos de 40 mil votos, dentre 2,7 milhões que estavam em jogo. Apesar da tensão natural, até o momento a campanha é considerada de bom nível, inclusive nas redes sociais, e sem registro de situações graves de violência política. Pelo menos um debate obrigatório previsto em lei será realizado entre os candidatos em data a ser estabelecida pela Corte Eleitoral. O próximo presidente assume em março de 2025, para um mandato de cinco anos. •

Publicado na edição n° 1335 de CartaCapital, em 06 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Cenário aberto’

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