Mundo
Caixa de Pandora
Com as intervenções de Elon Musk na política de moderação do Twitter, o discurso de ódio teve crescimento explosivo na plataforma, atestam pesquisas


Poucas horas após enviar um e-mail aos integrantes do Conselho de Confiança e Segurança do Twitter, painel de especialistas externos responsável por revisar as práticas de moderação de conteúdo na plataforma, no qual demitia todos os contratados e desejava melhor sorte no futuro, o bilionário sul-africano Elon Musk fez uma curta postagem na rede social: a palavra “Siga” acompanhada do emoji de um coelho. A mensagem aparentemente inofensiva atiçou os seguidores da teoria da conspiração QAnon, que acreditam na existência de uma cabala sinistra a comandar o mundo e combatida em segredo por Donald Trump. Entre os adeptos da seita, “seguir o coelho branco” significa buscar por evidências da ação desse grupo maligno.
Musk gosta de instigar grupos extremistas. Recentemente, ele escreveu na plataforma que gostaria de saber como a Terra seria daqui a 88 milhões de anos, número com significado especial para os neonazistas – seria um código para Heil Hitler, uma vez que “H” é a oitava letra do alfabeto. Após o empresário concluir a compra do Twitter por 44 bilhões de dólares e demitir metade de seus funcionários, os discursos de ódio se alastraram na plataforma feito rastilho de pólvora. Pesquisas de instituições como o Centro para Combate do Ódio Online e a Liga Contra a Difamação revelam que as mensagens antissemitas cresceram 61%, os ataques contra a comunidade LGBTQIA+ aumentaram 58% e as ofensas raciais contra negros subiram mais de 300%.
Os ataques racistas aumentaram mais de 300%. As ofensas antissemitas ou contra gays tiveram altas superiores a 58%
De acordo com outro estudo, publicado pelo Centro para Comunicação Estratégica da Montclair State University, no estado de New Jersey, os comentários contra homossexuais atingiram um pico 885% superior à média no fim de novembro, logo após um atentado a tiros em uma boate LGBTQIA+ de Colorado Springs, que deixou cinco mortos e 18 feridos. Sem apresentar fontes ou dados, Musk rebate a acusação, dizendo que, ao contrário, os discursos de ódio despencaram a um terço do que havia antes de ele assumir o comando da plataforma
O excêntrico bilionário tem adotado o mesmo estilo provocador ao opinar sobre temas políticos. Identificado com a direita mais radical do Partido Republicano, Musk publicou numerosas críticas ao presidente democrata Joe Biden e seus assessores, principalmente o médico-chefe do Centro de Controle de Doenças Contagiosas, Anthony Fauci, responsável pelos programas de combate à Covid-19. O empresário fez questão de acabar com os avisos de desinformação sobre as vacinas e comentários negacionistas da ciência na plataforma.
Mesmo conhecendo o perfil reacionário do novo dono do Twitter, parte dos usuários brasileiros ficou surpresa quando Musk resolveu falar sobre a eleição que trouxe Lula de volta à Presidência da República. O magnata passou semanas falando sobre possíveis manipulações da antiga cúpula do Twitter para influenciar disputas políticas nos EUA e, quando questionado por um correspondente da Rebel News Australia sobre outras eleições que podem ter sido influenciadas pela plataforma, informou ter recebido “relatos preocupantes” sobre a eleição no Brasil. “Se os tuítes são verdadeiros, é possível que o Twitter tenha favorecido candidatos de esquerda”, acrescentou. A postagem, realizada em 3 de dezembro, teve mais de 242 mil curtidas. “Parece ser mais um aceno aos grupos de extrema-direita, mas o episódio tem algumas singularidades”, observa a jornalista Eliara Santana, pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e do Observatório das Eleições. “Eduardo Bolsonaro, o filho Zero Três do presidente em exercício, parece ter um trânsito grande com Musk, assim como tinha com Olavo de Carvalho.”
Brincando com fogo. O bilionário sul-africano gosta de instigar os grupos extremistas – Imagem: Zack/MCom
Essa relação gerou uma aproximação entre o governo de Jair Bolsonaro e o magnata do ramo da tecnologia. Sob o pretexto de apresentar um projeto da empresa Space X para levar a internet via satélite para áreas isoladas da Floresta Amazônica, um encontro entre Bolsonaro, a cúpula do Executivo Federal e Musk foi intermediado pelo ministro Fábio Faria. Eliara Santana está convencida, porém, de que o encontro serviu a outros propósitos, bem menos nobres. “Naquele momento, ninguém deu muita bola para a reunião, mas não foi um encontro aleatório, não foi para comprar satélite. A extrema-direita internacional estava de olho na eleição do Brasil por termos aqui um ecossistema de desinformação único, como denunciado pelo ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral. É um sistema organizado, com enorme capilaridade, estrutura muito bem financiada, aporte do Poder Público, em um país de dimensões continentais. Existe, ainda, uma interface com o sistema de informação tradicional e com o elemento religioso. Infelizmente, esse ecossistema não será extinto com a saída de Bolsonaro da Presidência.”
O interesse de Musk na máquina de desinformação do governo brasileiro e a vontade dos influenciadores de extrema-direita do País em fazer da plataforma um campo livre para amplificarem suas narrativas levou figuras como o youtuber Kim Paim, o empresário Paulo Figueiredo Filho, neto do ditador João Baptista Figueiredo e comentarista da rádio Jovem Pan, e Eduardo Bolsonaro a tentarem interagir com o bilionário depois que ele assumiu o controle do Twitter. Musk prometeu a Figueiredo Filho investigar se os funcionários da rede social estavam censurando ou sabotando contas de representantes da direita nacional. Já Zero Três usou a plataforma para pedir que o novo dono reativasse dez contas derrubadas por ordem do TSE, incluindo as do blogueiro Allan dos Santos, foragido da Justiça, do empresário Luciano Hang, dono das Lojas Havan, e do youtuber Nikolas Ferreira, recém-eleito deputado por Minas Gerais.
Parceria. Bolsonaro e Musk estreitaram relações durante uma visita do magnata ao Brasil, sob o pretexto de vender satélites – Imagem: Cleverson Oliveira/MCom
Musk, que deixou de ser o homem mais rico do mundo neste ano, após perder mais de 100 bilhões de dólares em investimentos pouco lucrativos, faz esses acenos em meio à decisão controversa de permitir que contas banidas por disseminar discurso de ódio ou por espalhar fake news retomem as atividades na plataforma. Radicado nos EUA, o empresário sul-africano identifica-se como um “absolutista da liberdade de expressão” e, portanto, defende que o Twitter deixe de controlar o que as pessoas dizem. Para ele, a rede social só deveria derrubar contas que reproduzem conteúdo automaticamente ou de usuários que tentam manipular o funcionamento da plataforma para vantagem própria. Segundo David Nemer, professor no Departamento de Estudos de Mídia na Universidade da Virgínia, não há comprovação alguma de que Musk esteja, de fato, fazendo isso. “Na verdade, ele próprio motiva usuários da extrema-direita a fazerem o que bem entendem, a publicarem mensagens racistas, homofóbicas e todo o tipo de conteúdo nocivo.”
Pesquisador associado do Berkman Klein Center for Internet and Society na Universidade de Harvard, Nemer pondera, porém, que Musk não demonstrou ter interesse de confrontar as autoridades nacionais ou desrespeitar ordens judiciais. No caso brasileiro, em que a maioria das contas derrubadas foi resultado de decisões de tribunais superiores, o dono do Twitter colocaria seu negócio em risco se decidisse ignorar as determinações do Judiciário. “O TSE chegou bem perto de banir o Telegram e, se for desrespeitar as leis, o Twitter pode ir pelo mesmo caminho, além de ficar sujeito a pesadas multas. Não podemos, porém, descartar essa possibilidade.”
Sem provas, Musk insinua que a antiga cúpula do Twitter favoreceu candidatos da esquerda nas eleições brasileiras
Entre as contas reativadas na plataforma figuram as de Andrew Anglin, dono dos maiores sites neonazistas do mundo, Clandestine e IET, de líderes da comunidade QAnon e do próprio Donald Trump, banido desde que usou o Twitter para espalhar falsas alegações de fraude na eleição de 2020 e insuflar a invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021. De acordo com Mike Rothschild, autor do livro The Storm Is Upon Us: How QAnon Became a Movement, Cult, and Conspiracy Theory of Everything (A Tempestade Está Sobre Nós: Como o QAnon se Tornou um Movimento, um Culto e uma Teoria da Conspiração Sobre Tudo, em tradução livre), “a moderação (feita pelo Twitter na administração de Musk) não faz o menor sentido, uma vez que ele oscila entre anistia total e um novo endurecimento. Muitas contas de extremistas tiveram de ser banidas novamente”.
Foi o caso do rapper Kanye West, também conhecido como Ye, expulso por fazer comentários antissemitas. Ele recebeu o perdão de Musk e acabou banido novamente, após publicar mensagens de ódio e conceder uma nauseante entrevista, na qual confessou sua simpatia pelo nazismo. “Musk está, com certeza, apelando para conspiradores da extrema-direita, muitos dos quais também veem nele alguém que enfrenta o poder e fala a verdade, com a capacidade de dizer e fazer qualquer coisa que quiser”, diz Rothschild. “Parece, ainda, que Musk quer ser admirado por essas pessoas, então a relação entre eles está se tonando simbiótica rapidamente.”
Barreira judicial. O TSE mantém o veto a Bia Kicis e Carla Zambelli – Imagem: Redes sociais
A reativação das contas também tem relação com certa estratégia de negócios, a envolver outros dois elementos: o combate a contas inautênticas, sobre as quais Musk ainda não apresentou provas do que está fazendo, e uma mudança algorítmica, a influenciar os conteúdos que aparecem com mais frequência. Muitos usuários, sobretudo os identificados com a esquerda, têm reclamado no Twitter que as contas que seguem ou os conteúdos que desejam simplesmente desapareceram do seus feeds, ao passo que outras, com mensagens odiosas ou repugnantes, tomaram seus lugares.
Enquanto Musk se gaba da redução dos conteúdos disseminados por robôs e do aumento das interações entre seres humanos de carne e osso, a proliferação de discursos de ódio revela que o foco do magnata é equivocado, avalia Nemer. “Pode ser que a extrema-direita tenha aumentado de forma orgânica. O ódio que vemos na rede social é real, amplificado por pessoas que realmente são conectadas na plataforma e produzem esse tipo de conteúdo.”
As atabalhoadas intervenções de Musk afugentam os anunciantes, que temem a associação com uma plataforma que promove o radicalismo e o ódio. Ninguém tem clareza sobre os reais objetivos do bilionário. Rothschild especula que o empresário queira trazer o Twitter de volta ao que ele era antes de 2020, quando a pressão por moderação contra a desinformação sobre a Covid-19 ampliou-se para o campo político e culminou no banimento de Trump. Eliara Santana identifica, porém, um projeto de poder, no qual Musk se apresenta como um “elo de articulação da extrema-direita mundial”, abrindo as portas para que eles ocupem mais espaços na rede social. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Caixa de Pandora”
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