Mundo
Bucha de canhão
A disputa entre facções da elite política insuflam as ruas do Cazaquistão


Para muitos cazaques, a história completa por trás dos distúrbios recentes permanece tão obscura quanto a neblina que ao mesmo tempo envolveu Almaty, a maior cidade do país e centro da violência. Os cidadãos não conseguiam acessar informações precisas, porque um apagão na internet congelou quase todo o acesso ao mundo exterior durante os trágicos dias de violência, quando veículos militares circularam pelas ruas, prédios governamentais foram queimados e a televisão estatal transmitiu ameaças contínuas de que “bandidos e terroristas” seriam eliminados sem piedade.
Agora, tanto a ordem quanto a internet foram amplamente restauradas, mas ainda há mais perguntas do que respostas. Uma coisa está clara: muitas das antigas suposições sobre o Cazaquistão, nação da Ásia Central rica em recursos, foram derrubadas. No mês passado, o país comemorou o trigésimo aniversário de sua independência, com discursos oficiais a salientar a imagem pacífica e próspera, que de modo geral evitou a agitação política e se orgulhava de uma política externa independente e “multivetorial”. Ao que parece, o Cazaquistão conseguiu até mesmo administrar com sucesso a complicada transição de poder de seu antigo presidente, Nursultan Nazarbayev, que liderou o país desde a independência, em 1991, até 2019, para seu sucessor escolhido pessoalmente, Kassym-Jomart Tokayev.
Um mês depois, o quadro é muito diferente. Protestos pacíficos se transformaram em confrontos violentos, Tokayev anunciou que ordenou às forças de segurança que “atirem para matar, sem aviso”, e tropas de uma aliança militar liderada pela Rússia estão em campo após serem chamadas por Tokayev. Em meio a tudo isso, dezenas de mortes e a sensação, segundo o depoimento de testemunhas oculares, de que o número real de vítimas pode ser muito maior do que os 26 “criminosos armados” e 18 oficiais de segurança que o Ministério do Interior disse que foram mortos. Mais de 4 mil manifestantes foram detidos.
Houve a suspeita de que talvez haja mais em jogo do que uma revolta popular, e isso foi reforçado pelo anúncio no sábado 8 de que Karim Masimov, poderoso ex-chefe de segurança e primeiro-ministro, havia sido preso por suspeita de traição. A medida apenas aumentou a especulação de que os protestos iniciais poderiam ter sido usados por grupos da elite política para travar suas próprias batalhas. Uma fonte nos círculos empresariais cazaques deu credibilidade a esse cenário, descrevendo uma situação de crescente tensão nos últimos meses entre figuras próximas a Nazarbayev e seu sucessor, Tokayev. “Nos últimos seis a 12 meses houve aumento das disputas, o que paralisou as tomadas de decisões”, disse a fonte. “Está borbulhando há algum tempo.”
O presidente Tokayev acusa um golpe e ordenou às tropas que “atirem para matar”
Um dos episódios mais surpreendentes foi a transformação de Tokayev de tranquilo substituto a autocrata furioso, prometendo esmagar brutalmente a revolta. “Estávamos lidando com bandidos armados e bem preparados, tanto locais quanto estrangeiros. Bandidos e terroristas que devem ser destruídos. Isso acontecerá o mais rápido possível”, disse o presidente em um discurso intransigente à nação na sexta-feira 8, observando que havia 20 mil desses “bandidos” só em Almaty. Ele também postou uma mensagem em inglês no Twitter: “Na minha visão básica, nada de conversas com os terroristas: devemos matá-los”. Mais tarde foi deletada.
O protesto começou no oeste, no fim de semana do ano-novo, desencadeado pelo aumento dos preços dos combustíveis, e rapidamente se espalhou para outras cidades, Almaty incluída. Lá, muitos dos que estavam nas ruas relataram que a manifestação foi dominada por grupos violentos, alguns dos quais pareciam bem organizados, que atacaram prédios do governo e tomaram brevemente o aeroporto. Tokayev, em seu discurso, falou vagamente sobre atacantes “treinados por estrangeiros”, mas não deu detalhes e não especificou para quem eles supostamente trabalhavam.
Muitas questões permanecem sobre o papel de Nazarbayev nas aparentes disputas. Tokayev anunciou que removeu Nazarbayev do cargo de chefe do conselho de segurança, sem declarar se isso foi com ou sem a aprovação do ex-presidente. Houve rumores persistentes ao longo da semana de que Nazarbayev e sua família tinham fugido do país. No sábado, o porta-voz de Nazarbayev, Aidos Ukibay, denunciou os rumores como “informação sabidamente falsa e especulativa”. Ele disse que Nazarbayev estava em contato próximo com Tokayev e queria que a nação se unisse em torno do novo presidente. Mas o ex-líder ficou em silêncio durante a semana mais dramática da história do jovem país.
Foi uma ausência surpreendente de um político que personificou o Cazaquistão nas últimas três décadas. Quando ele deixou o cargo, em 2019, a nova capital criada por sua ordem em 1997 foi renomeada Nur-Sultan, em sua homenagem. Apesar de todos os excessos do culto à personalidade, durante muito tempo o Cazaquistão de Nazarbayev foi uma autocracia muito mais inteligente do que aquelas de outros países pós-soviéticos da Ásia Central. Muitos diplomatas ocidentais tinham uma visão positiva de sua liderança, apesar das deficiências democráticas, em parte por causa das oportunidades lucrativas que o país oferecia às empresas ocidentais. “Ele conseguiu equilibrar a Rússia e a China e outras influências externas, e implementou algumas reformas genuínas”, disse uma fonte diplomática ocidental.
Qualquer que seja o resultado final do tumulto, as imagens de uma estátua de Nazarbayev na cidade de Taldykorgan sendo derrubada e de multidões a gritar “Fora, velho!” provavelmente vão alterar fundamentalmente o legado que ele esperava. À medida que a atenção se volta para as lutas internas e as implicações geopolíticas, alguns no país pedem que a tragédia humana dos últimos dias não seja esquecida. No sábado, um grupo de organizações da sociedade civil cazaque escreveu uma carta aberta às autoridades: “Agitação e violência não têm lugar em manifestações pacíficas… Pedimos às autoridades que realizem uma investigação completa de cada parte desta tragédia”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1191 DE CARTACAPITAL, EM 13 DE JANEIRO DE 2022.
CRÉDITOS DA PÁGINA: EYEPRESS NEWS/AFP
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