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Briga de família

O golpe militar no Gabão reflete a disputa no interior da oligarquia que manda no país há décadas

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Tensão. As forças armadas alegam fraude na eleição de Ali Bongo, herdeiro de uma dinastia política. As quarteladas na África se sucedem – Imagem: AFP e Jonathan Hordle/FCDO
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O general do Exército Brice Clotaire Oligui Nguema, autoproclamado novo líder do Gabão, na África Ocidental, prometeu “virar a página” de mais de meio século de desgoverno da família de Ali Bongo Ondimba, presidente deposto. O novo começo pode, no entanto, revelar-se ilusório, pois Nguema seria um primo de Ali Bongo. O mais recente drama golpista na África parece ter começado como uma briga familiar.

Como assistente pessoal do presidente Omar Bongo, Nguema ocupou uma posição influente nos círculos dominantes do Gabão. Mas, quando Ali Bongo assumiu o poder, após a morte do pai, em 2009, Nguema foi efetivamente banido. Parece que a amizade terminou entre Bongo filho e o ex-confidente de seu pai. O furor provocado pelas eleições presidenciais do mês passado, marcadas por fraude, deu a Nguema a oportunidade esperada.

Deixando de lado a dinâmica interna do clã Bongo, o fato de mais um governo africano ter sido derrubado pela força militar é alarmante. O grupo da África Ocidental Ecowas, a União Africana e a comunidade internacional deveriam dizer a Nguema que seu plano de tomar posse como “presidente de transição” é inaceitável. A população do Gabão deve poder escolher seu próximo líder de forma democrática e sem demora.

A turbulência em Libreville, a capital, é ainda mais perturbadora no sentido de que o Gabão, com suas grandes reservas de petróleo e uma população relativamente pequena, de 2,3 milhões de habitantes, deveria ser próspero. Tal como acontece em muitos de seus vizinhos, a má governança e a corrupção no topo deixaram, porém, em dificuldades a base social. Alguns também apontam o dedo para a França, antiga potência colonial, cujos extensos interesses comerciais reforçaram os interesses próprios da elite gananciosa do país.

O golpe enquadra-se num padrão perturbador em toda a África Subsaariana, que tem sofrido uma série de tomadas militares desde 2020, incluindo no ­Mali, na Guiné, em Burquina Fasso, no ­Chade, no Sudão e, mais recentemente, no Níger. Um fator comum é a demografia. Todos esses países têm populações cada vez mais jovens e em rápido crescimento. Na África, a idade média é de, aproximadamente, 19 anos. Em comparação, a idade média dos líderes africanos é de 63.

A crescente pressão por mudanças de parte de jovens com mais escolaridade e residentes cada vez mais urbanos seria normal, mesmo se existissem instituições confiáveis. As pesquisas mostram que os jovens africanos têm sede de uma democracia genuína, mas muitos apoiarão golpes militares se tudo o mais falhar. Entretanto, a mudança positiva é obstruída pelos problemas compartilhados de pobreza enraizada, mudanças climáticas, insegurança alimentar e sanitária e conflitos, em particular o impacto dos grupos terroristas jihadistas islâmicos na região do Sahel.

O golpe militar no Gabão reflete a disputa no interior da oligarquia que manda no país há décadas

Mesmo nos países africanos que não sofreram recentemente golpes de Estado, o governo democrático está muitas vezes por um fio. As eleições escandalosamente fraudulentas no Zimbábue são apenas o exemplo mais recente dessa praga. Os eleitores em Uganda, África do Sul, Angola e Etiópia têm boas razões para se admirar com as artimanhas de seus líderes. Entretanto, é cada vez maior o espectro do endividamento em todo o continente, ligado ao baixo crescimento, à inflação, à pandemia e às taxas de juro ocidentais mais elevadas.

A crise da democracia na África também tem causas externas poderosas, nomeadamente os legados coloniais das potências europeias. A turbulência no Mali, onde o presidente da França, Emmanuel Macron, ordenou uma retirada humilhante, e em outros lugares desafia o conceito intrinsecamente condescendente de África “francófona”. Os Estados Unidos enfrentam apelos para reavaliar políticas que priorizem a segurança em detrimento do desenvolvimento. Os cortes injustificados da ajuda externa do Reino Unido atingiram desproporcionalmente a África.

O paradoxo é que, apesar de todos os seus problemas, a África vibrante, próspera, talentosa e rica em recursos é, em muitos aspectos, o futuro. Essa perspectiva, somada a preocupações mais egoístas sobre a migração em massa, a segurança sanitária global, a propagação da ideologia jihadista e a influência crescente da China e da Rússia autoritárias, sugere que uma atualização radical da relação do Ocidente com a potência africana do século XXI seria do melhor interesse de todos.

Atualização de CartaCapital. O general Brice Nguema tomou posse como presidente interino na segunda-feira 4 e ordenou a imediata abertura das fronteiras. A pressão internacional tem sido quase nula. O comunicado da Comunidade Econômica dos Estados da África Central chega a ser risível. “Foi dado um prazo de um ano para que o processo político seja reativado para um rápido regresso à ordem constitucional”, informou na rede X ­(ex-Twitter) Teodoro Obiang, vice-presidente da Guiné Equatorial. O governo francês não agiu de maneira muito diferente. Preferiu amenizar o golpe. “A França condena todos os atos de força”, declarou Sébastien ­Lecornu, ministro da Defesa, “mas não podemos equiparar a situação do Níger, onde militares ilegítimos depuseram um presidente legitimamente eleito, com a do Gabão, onde o motivo apresentado é precisamente o não cumprimento da lei eleitoral e a Constituição. De fato, há dúvidas sobre a transparência das eleições nesse país.” •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1276 de CartaCapital, em 13 de setembro de 2023.

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