Mundo
Borracha no passado
Donald Trump busca reescrever a história norte-americana, apagando seus capítulos mais incômodos
 
         
        A demolição da Ala Leste da Casa Branca e a escalada da censura cultural sob a administração de Donald Trump escancaram uma tentativa de reescrever a história dos Estados Unidos, apagando seus capítulos mais incômodos. Em decretos como o “Restoring Truth and Sanity to American History” (Restaurando a Verdade e a Sanidade à História Americana), museus, instituições culturais e parques nacionais foram orientados a banir “ideologias divisionistas” e a priorizar um discurso “patriótico e edificante”. Gestos emblemáticos, como a remoção da tela Immigrants Crossing the Border Wall Into South Texas e da icônica fotografia The Scourged Back, antes em exibição no Smithsonian Institution, o maior complexo museológico do mundo, reforçam a narrativa revisionista que busca consolidar uma visão única e laudatória do passado norte-americano, atingindo especialmente a memória das violências raciais e da luta por justiça social.
“O dinheiro do contribuinte não deve ser usado para coisas que colocam os norte-americanos uns contra os outros”, justificou a porta-voz da Casa Branca, Karoline Leavitt. “O Smithsonian deve expor a história de forma precisa, honesta e factual.” Esse esforço oficial vai além da retirada sistemática de obras e textos curatoriais sobre escravidão, migração e minorias, e busca também reescrever conteúdos em parques nacionais sob o pretexto de restaurar um suposto ideal patriótico. Foi o caso, por exemplo, da reinstalação da estátua em homenagem a Albert Pike, oficial confederado frequentemente associado à Ku Klux Klan por historiadores. A obra, removida durante os protestos do Black Lives Matter em 2020, retornou ao Capitólio, em Washington, na terça-feira 28, evidenciando que a pressão pela volta de monumentos confederados e o redirecionamento de verbas a aliados conservadores não apenas ganham força, mas também exercem mais poder e influência do que muitos supõem.
Em junho, Trump aprofundou sua agenda revisionista ao restabelecer os nomes originais de bases militares históricas, como Fort Benning e Fort Bragg, que haviam sido rebatizadas para eliminar referências a generais confederados. Em um discurso na Carolina do Norte, o presidente justificou a decisão: “Ganhamos muitas batalhas nessas bases. Não é hora de mudar”. No entanto, nenhuma mudança foi tão emblemática e polêmica quanto a demolição repentina da Ala Leste da Casa Branca, uma estrutura centenária que, por décadas, abrigou espaços essenciais, entre eles o gabinete da primeira-dama.
Em meio à escalada da censura cultural, o presidente anunciou a construção de um arco do triunfo em sua própria homenagem
Em 20 de outubro, operários começaram a derrubar o prédio sem seguir os processos legais de revisão e consulta pública obrigatórios para intervenções em patrimônios históricos. A obra, prevista para ser concluída em 2027, inclui a construção de um salão de baile moderno, com cerca de 8,4 mil metros quadrados, destinado a recepções de chefes de Estado. Em entrevista coletiva, Trump foi questionado sobre a falta de autorização oficial para a demolição e respondeu: “Perguntei ‘quanto tempo isso vai levar?’ e me disseram que poderiam começar à noite, sem necessidade de aprovações. Esta é a Casa Branca e, aqui, eu posso tudo que quero”.
Logo que as primeiras imagens das equipes demolindo o prédio foram divulgadas, a decisão foi contestada por especialistas em preservação e por entidades de patrimônio, que enxergam na iniciativa um desrespeito à integridade histórica do edifício e acusam Trump de causar um dano irreversível a um símbolo fundamental do país. Theresa Pierno, presidente da National Parks Conservation Association, afirmou estar “horrorizada” com a demolição. “Existem mecanismos para proteger lugares históricos, e a Casa do Povo, um dos nossos parques nacionais mais emblemáticos, não é exceção”, observa. “O presidente prometeu ao povo norte-americano que não tocaria no prédio existente. E, no entanto, acordamos com imagens chocantes de uma Ala Leste demolida. Se o nosso símbolo mais importante de liberdade e democracia pode ser destruído num piscar de olhos, o que vem a seguir?”
Para Trump, críticas como as de Pierno fazem parte de uma “indignação fabricada” e constituem um ataque orquestrado por “esquerdistas desequilibrados”. “Há mais de 150 anos, presidentes sonham com um salão de festas digno na Casa Branca, capaz de receber centenas de convidados. Esta obra é um presente para a história e para as gerações futuras. É meu lugar favorito. Eu amo esse lugar”, afirmou, reiterando que o custo, estimado em 300 milhões de dólares, será financiado por doações privadas e administrado por um conselho de 12 integrantes, composto majoritariamente de aliados.
Em entrevista à rádio NPR, o historiador Jefferson Cowie, vencedor do Prêmio Pulitzer, alerta que o presidente busca reescrever a história segundo sua visão particular. “Como muitos populistas, Trump ancora-se na nostalgia de uma era dourada, a ideia de que alguém lhe teria tirado seu direito de nascença e de que existe uma versão da América à qual precisamos retornar. Ele parece invocar duas épocas distintas como referência: a era da manufatura norte-americana, quando os empregos eram estáveis e os salários cresciam, e os anos 1950, que antecederam os direitos civis, uma época de lares brancos e patriarcais.”
Além das obras na Casa Branca, o presidente também está envolvido no planejamento de um novo monumento em Washington: um arco do triunfo, muito semelhante ao de Paris, para comemorar o 250º aniversário da assinatura da Declaração de Independência, em julho do ano que vem. A maquete do projeto foi exibida durante uma coletiva de imprensa com o diretor do FBI, Kash Patel, no Salão Oval, em 15 de outubro. Quando questionado a quem se destinaria o monumento, Trump não hesitou em responder: “É para mim”. Modéstia não lhe falta. Todos esses movimentos funcionam como metáforas do esforço do governo para “restaurar a verdade e a sanidade” à sua maneira: apagando, remodelando e glorificando um passado que justifique sua presença e seus objetivos. A cada nova decisão presidencial, o futuro dos museus, das memórias e do próprio edifício-símbolo da democracia norte-americana torna-se ainda mais incerto e controverso. •
Publicado na edição n° 1386 de CartaCapital, em 05 de novembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Borracha no passado’
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