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Os adversários de Djokovic foram elegantes e generosos, mas não condescendentes com o tenista antivacina

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Djokovic arca com as consequências – Imagem: Clive Brunskill/Getty Images/AFP
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Stefanos Tsitsipas aprendeu a escutar a ciência sobre a Covid-19 da maneira difícil. Não a mais difícil, é claro. Nem da maneira difícil que os “antivacina” mais infelizes experimentaram, depois de ingerirem teorias da conspiração sobre efeitos colaterais e regurgitarem promessas das redes sociais de que não havia risco para os jovens e saudáveis. O tenista em 4º lugar no ranking mundial, felizmente, não se viu derrubado pelo vírus ou num ventilador mecânico em um hospital. Ele simplesmente se viu publicamente repreendido por seu próprio governo.

Enquanto o pai e treinador de ­Tsitsipas, Apostolos, dava entrevistas nas quais afirmava que “os atletas têm um sistema imune forte o suficiente para encarar qualquer desafio”, o porta-voz do governo grego indicava que um tenista de 23 anos, por mais bem-sucedido, não tem “o conhecimento, nem os estudos, nem o trabalho de pesquisa” para dar opiniões válidas sobre vacinação. Mas a história teve um final feliz: Tsitsipas parou de proclamar conjecturas mal informadas e tomou a vacina.

Na sexta-feira 14, apenas três dias antes do início programado do Aberto da Austrália, ele era um dos muitos jogadores que davam suas opiniões sobre as dificuldades de Novak Djokovic relacionadas ao visto de entrada no país, antes que o número 1 do mundo soubesse que seria deportado, depois que o tribunal federal rejeitou a proposta do atleta sérvio para restaurar seu visto. “Há duas maneiras de ver a coisa”, disse Tsitsipas. “Um lado é que quase todos os jogadores estão totalmente vacinados… e seguiram os protocolos para jogar na Austrália. Do outro, parece que nem todo mundo acata as regras.” Essas palavras soaram menos como perspectivas opostas e mais como uma única ideia precisa. “Uma minoria muito reduzida preferiu seguir seu próprio caminho”, disse Tsitsipas, “o que faz a maioria parecer idiota.”

E assim, pela segunda vez sobre o assunto da Covid, Tsitsipas estava novamente errado. Porque a posição de Djokovic não fez seus colegas parecerem nada idiotas. No meio do que Rafael ­Nadal chamou precisamente de “circo”, uma farsa processual de miasma jurídico, ofuscação médica e política populista, seus colegas tenistas são os que menos pareceram palhaços.

Foram eles, mais que os administradores do esporte, ou o primeiro-ministro australiano, ou o próprio Djokovic, que reagiram à situação que cerca seu adversário esportivo da maneira mais comedida e deliberada. Veja Nadal, cujo resumo inicial da confusão em que seu rival se meteu foi devastadoramente simples. “Se ele quisesse, estaria jogando aqui sem qualquer problema”, disse. “Todo mundo é livre para tomar suas decisões, mas há algumas consequências, não?”

Dos cem melhores atletas do Grand Slam, 97 estão vacinados

Em um momento em que a maior parte do que voava eram xingamentos, aqui estava uma calma porção de verdade. E, embora estivesse clara sua posição sobre o assunto, também estava claro que não era algo pessoal e que ele sentia pena pela dura situação em que Novak se meteu. A maioria dos jogadores questionados sobre Djokovic mostrou uma disposição semelhante, misto de simpatia pelo que um amigo e colega atleta passava com uma mensagem igualmente forte sobre a importância de se vacinar. ­Andy Murray, sempre falando o que pensa, guardou suas observações elitistas para Nigel Farage, que estava visitando a família de Djokovic: “Por favor, registrem o momento estranho quando ele disser que passou a maior parte de sua carreira fazendo campanha para deportar as pessoas da Europa Oriental”.

Para o nº 1 do mundo, entretanto, havia preocupação real – “é positivo que ele não esteja mais em detenção” –, juntamente com um suspiro tipicamente expressivo. Murray recusou-se a dar qualquer opinião até que Djokovic tivesse a oportunidade de responder a perguntas sobre seus testes de Covid. O irmão de Murray, Jamie, foi apenas um pouco mais irônico. “Se fosse eu que não tivesse me vacinado, não conseguiria uma isenção”, disse, enquanto seu colega de time da Grã-Bretanha, Liam Broady, não conseguia esconder o riso. “Mas que bom ele ser liberado para vir à Austrália e competir.”

O vestiário do circuito do tênis é realmente um ambiente único de esporte, de trabalho e de vida. Muitas vezes ele dá a impressão de estar povoado com amigos dúbios, rivais decididos a aprender e expor as fraquezas dos outros, enquanto são obrigados a conviver a um ponto em que se tornam uma família passageira, mas não totalmente à vontade. É um lugar onde você precisa se defender, e os únicos capazes de sentir empatia por suas circunstâncias são os mesmos que o desafiam. Enquanto quem está de fora foi rápido em usar Djokovic como símbolo, seja da liberdade pessoal ou do controle de fronteiras, aqueles que realmente jogam contra ele são os que podem mais bem avaliar o que se passa.

O episódio revelou o tipo de respeito e paciência que faz uma comunidade funcionar. Para eles, Djokovic não é uma representação abstrata da era da desinformação nem um supersalvador vegano a combater a injustiça a cada torneio de tênis (embora seu pai o tenha chamado de Espartaco). Ele é um atleta que se esforça muito, ama seu esporte, desfruta a companhia dos outros. Eles podem admirá-lo e respeitá-lo enquanto mantêm a firme crença de que a segurança da Covid-19 é importante.

Ao contrário dos esportes coletivos, em que treinadores, diretores e capitães podem (e deveriam) impor certa liderança sobre os jogadores para garantir a segurança de todos, os mundos dos esportes individuais como tênis, golfe, sinuca ou atletismo dependem da relação entre pares. Djokovic é, de fato, um estranho no torneio ATP: 97 dos 100 maiores jogadores estão vacinados, e a vacinação entre os profissionais do tênis aumentou drasticamente depois que o Aberto da Austrália a tornou obrigatória.

O que seus colegas atletas fizeram, na verdade, foi modelar a maneira de lidar com esse assunto em nossas próprias comunidades – com generosidade pessoal em relação àqueles que não podem ou não querem compartilhar nossas opiniões, enquanto mantemos um compromisso aberto e tranquilo com a ciência e os fatos. Todos nós temos amigos, parentes ou colegas com opiniões intransigentes sobre por que não querem se vacinar. Todos são livres para tomar suas próprias decisões, mas há algumas consequências, não? •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1192 DE CARTACAPITAL, EM 26 DE JANEIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bola fora”

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