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Bloco de gelo
A maioria esmagadora da população rechaça a ideia de anexação da ilha pelos Estados Unidos


Emissário de Donald Trump, o vice-presidente JD Vance deu o recado durante a visita, na sexta-feira 28, a Pituffik, base militar norte-americana instalada na Groenlândia em 1958. Na comitiva estava Mike Waltz, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca. “Nossa questão não é com o povo da Groenlândia, que acho ser incrível. Nosso argumento é com a liderança da Dinamarca, que tem subinvestido na região, na sua arquitetura de defesa”, discursou o vice. A solução? Anexar o território aos Estados Unidos. No mesmo dia, Trump postou um vídeo na rede X. “Hoje, a Groenlândia encara novas ameaças, da agressão russa à expansão chinesa”, afirmou em um trecho. “Nosso legado compartilhado ainda vive em cada missão conjunta, em cada patrulha do Ártico, cada parceria forjada sob a sombra do gelo que derrete e tensões crescentes. Isso não é apenas história, mas destino”. No dia seguinte, o republicano, em entrevista à rede de tevê NBC, foi mais explícito: “Há uma boa chance de que (a anexação) possa ser feita sem uso de força militar”, sem descartar, no entanto, o envio de tropas, se não houver alternativa.
Para Sebastião Velasco e Cruz, cientista político e professor do INCT–INEU, nas diferentes frentes abertas por Trump há um conflito de motivações contraditórias. Por um lado, haveria uma motivação ideológica assinalada na entrevista concedida pelo magnata no dia seguinte à confirmação de sua vitória eleitoral, quando invocou a figura do presidente William Mckinley. “Ali, Trump disparava declarações ameaçadoras alvejando Groenlândia, Canadá e Panamá. Sérias ou não, a naturalidade com que se referia à anexação desses países expressava uma visão de mundo em ruptura explícita com todos os princípios jurídicos da ordem internacional edificada depois da Segunda Guerra”.
Trump voltou a ameaçar o território. Usará a força, se necessário
A outra dimensão seria estratégica, resumida em duas dinâmicas centrais que se tornam possíveis com o derretimento da camada de gelo no Ártico: a abertura de novas rotas comerciais marítimas e a de novos terrenos para a extração de minerais raros essenciais à indústria de eletrônicos. Em artigo publicado em 2023, New Insights into Projected Arctic Sea Road: Operational Risks, Economic Values, and Policy Implications, Amanda Lynch e Xueke Li, do Instituto de Ambiente e Sociedade da Universidade de Brown, descrevem as alternativas que se abrem com a mudança climática. As possiblidades de navegação variam de acordo com taxas de derretimento atreladas a emissões de gás, mas há uma janela observada de um cenário de navegação mais frequente e previsível a partir de 2040. De acordo com os autores, há três rotas de navegação de otimização máxima identificáveis: a Passagem Noroeste (NEP), a Passagem Nordeste (NWP) e a Rota Central do Ártico (CAR). Uma quarta possibilidade se daria em um cenário de alta emissão de gases, a Rota Marítima Transpolar (TSR).
A NEP corre próximo ao território russo e é explorada em conjunto por Rússia e China. Segundo levantamento da Universidade de Osnabrück, pela rota os russos transportam gás de Yamal até o território chinês. Pequim lançou, em 2018, a iniciativa da Rota da Seda Polar, basicamente a busca de vias comerciais para conectar América do Norte, Ásia Oriental e Europa Ocidental por meio do Ártico. A NWP corre em águas compartilhadas por Canadá e Groenlândia, administradas pela Dinamarca. De 2040 em diante, ganharia importância a CAR, que corta a parte central do Ártico, e navegaria por águas de Canadá, Groenlândia e Rússia. No cenário da TSR, abre-se uma alternativa a ocidente da CAR, mais perto da Groenlândia e do Canadá, evitando territórios marítimos russos. O tempo e a distância no comércio entre Ásia e Europa feito pelas rotas do Ártico, comparado à navegação pelo Canal de Suez, seria cerca de 40% menor.
Apoio inesperado. Nielsen estava com dificuldades para formar uma coalizão de governo, mas a ameaça de Trump veio bem a calhar – Imagem: Redes Sociais Primeiro Ministro da Groelândia
Michael Paul, pesquisador da região do Ártico no Instituto de Assuntos Internacionais e de Segurança da Alemanha, não enxerga nenhuma ameaça militar vinda da Groenlândia. “Trump usa o argumento da defesa como um instrumento para pressionar a Dinamarca e conseguir um acordo favorável sob as condições do ‘America First’. Com isso, ele ignora que o reino é um aliado da OTAN.” Ao mesmo tempo, afirma Paul, a Rússia não parece muito interessada na Groenlândia, “desde que não haja qualquer base militar dos EUA com capacidade de ataque balístico”. Velasco e Cruz ressalta: a contradição das motivações do republicano está no fato de que “a preocupação estratégica dos EUA seria facilmente atendida por meio da ampliação da presença militar na Groenlândia sob a cobertura da OTAN, mas isso não condiz com a orientação geral do discurso trumpista, que desqualifica a Europa e a Aliança Atlântica”.
Ursula Von der Leyen, presidenta da Comissão Europeia, na esteira das declarações do presidente dos EUA, disse, em entrevista ao jornal italiano Corriere della Sera, que a União Europeia coloca-se de forma firme ao lado da Groenlândia e da Dinamarca. “Nós apoiamos sua soberania, integridade territorial e seu direito de decidir o próprio curso.”
Para a população da ilha, importa a soberania, principalmente em relação aos recursos naturais. A Groenlândia faz parte da Dinamarca, que colonizou o território no século XVIII, mas se tornou uma região autônoma em 2009. O acordo assinado com Copenhague transfere aos locais a decisão, por meio de referendo, acerca de uma independência completa. Como no caso da Ucrânia, Trump está de olho justamente nos minerais sob o solo congelado da região. E não só ele. Velhos e novos aliados do Vale do Silício, berço das big techs, dependem das terras-raras como cobalto e lítio, elementos centrais na produção de semicondutores e outros componentes. A startup Kobold tem realizado, via Inteligência Artificial, o mapeamento de áreas ao redor do planeta que concentram esse tipo de material. Entre os investidores da Kobold estão dois dos neoamigos do presidente norte-americano, Mark Zuckerberg, CEO da Meta, e Jeff Bezos, fundador da Amazon.
“Não pertencemos a ninguém”, retruca Jens-Frederik Nielsen, novo premier da ilha
Ao site Lever, Majken Poulsen, do Instituto de Pesquisa Geológica da Dinamarca e da Groenlândia, revelou que no ano passado havia sido conduzida uma primeira exploração de lítio na ilha em colaboração com o Departamento de Estado norte-americano. O impasse é que, segundo o geologista, o governo local exige “regulações muito exigentes”, tanto relacionadas a proteções ambientais quanto a investimentos sociais, entre eles benefícios locais por taxas e pelo uso de força de trabalho local e repasses à educação.
Diante da ameaça de Trump, a população e a classe política se mobilizaram para responder ao assédio da Casa Branca. Enquanto Vance tomava um ar fresco na base militar, nascia uma nova coalizão partidária para governar a ilha. A frente reúne 23 dos 31 deputados do Parlamento local. Impulsionado pela arrogância de Washington, o acordo superou o impasse que se arrastava desde março e impedia formação de um gabinete. O novo primeiro-ministro, Jens-Frederik Nielsen, postou em sua rede social no domingo 30: “O presidente Trump disse que os EUA ‘tomarão a Groenlândia’. Deixe-me ser claro: os EUA não a terão. Nós não pertencemos a ninguém. Nós decidimos nosso futuro”. Em uma pesquisa de janeiro do instituto Verian para os jornais Berlingske e Sermitsiaq, 85% dos habitantes disseram preferir continuar sob o guarda-chuva da Dinamarca e apenas 6% gostariam de ser anexados pelos EUA. Os restantes 9% não souberam responder. •
Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Bloco de gelo’
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