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Batalha naval

O palco do conflito no Oriente Médio desloca-se para o Mar Vermelho

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Os militantes houthis não parecem intimidados pelos ataques aéreos dos Estados Unidos – Imagem: AFP e USS Carney/Marinha EUA
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No último verão do Hemisfério Norte, enquanto Washington tentava discretamente convencer a Arábia Saudita a rea­lizar o grande acordo de normalização das ­suas relações com Israel, os diplomatas em Riad estavam muito mais concentrados em garantir um acordo de paz diferente nas suas fronteiras meridionais com uma das insurgências mais bem-sucedidas dos tempos modernos, aquela liderada pelos rebeldes houthis do Iêmen, também conhecidos como Ansar Allah, ou “Apoiadores de Deus”.

Com um cessar-fogo informal no ­Iêmen, e após meses de conversas privadas mediadas principalmente em Omã, em 14 de setembro uma delegação ­houthi voou para Riad, onde se encontrou com o príncipe Khalid bin Salman, ministro da Defesa e irmão do príncipe herdeiro. Ainda havia grandes diferenças a resolver, mas, após décadas de várias formas de luta, parecia que a paz chegaria ao ­país, e em grande parte nos termos ditados por um grupo que não existia realmente como força política no Iêmen até o início dos anos 2000. A Arábia Saudita iria finalmente reduzir suas perdas na desastrosa ofensiva que lançou em 2015 para repelir os houthis. Vinte e três dias depois da reunião em Riad, o Hamas rompeu a fronteira com Israel, massacrou israelenses e desencadeou uma série de acontecimentos que agora deixaram o Iêmen exposto a um ataque de dois dias por submarinos e navios de guerra dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, no Mar Vermelho.

Os ataques às bases houthis no Iêmen, além de aumentar a tensão numa região assolada pela violência, afastaram ainda mais o país da ilusória paz interna. Num país cheio de nuances, dois fatores ampliaram a complexidade de uma região devastada por conflitos: o apoio dos ­houthis à causa palestina e a forma como a geografia do Iêmen tende a moldar a dinâmica política. Como observa a escritora Iona Craig, o Iêmen é um exemplo por excelência de geopolítica, o lugar onde a geografia e a política se unem.

Quase 15% dos produtos exportados para a Europa, Oriente Médio e Norte da África são transportados por via marítima

O próprio Iêmen pode ser relativamente pobre, mas os frutos, muitas vezes desprotegidos, da globalização ocidental passam tentadoramente pelas suas costas, dia e noite. Quase 15% dos produtos exportados para a Europa, Oriente Médio e Norte da África são transportados da Ásia e do Golfo Pérsico por via marítima. Quase 21,5% do petróleo refinado e mais de 13% do petróleo bruto passam por essa rota. As importações e exportações asiáticas representam cerca de um quarto do comércio externo total de Israel, e transitam principalmente pelo Mar Vermelho.

Há muito tempo Israel teme que a pequena largura do estreito de Bab ­al-Mandab represente uma vulnerabilidade de segurança. Durante décadas, procurou alianças com países como a atual Eritreia para se defender, primeiro dos esforços liderados pelo Egito e depois pelos iranianos, para fechar as vias navegáveis ao tráfego israelense. Na verdade, um motivo para Israel assinar os “Acordos de Abraão” com os Emirados Árabes Unidos em 2020 foi a própria rede de segurança marítima dos EAU, que abrange Djibuti, Eritreia, Somalilândia e a Ilha Perim e o arquipélago de Socotra, no Iêmen.

Os houthis, por sua vez, têm experimentado tornar-se uma potência naval. Em outubro de 2016, começaram a usar como base o porto estratégico de ­Hodeidah, recentemente capturado, na costa oeste do Iêmen. Eles dispararam duas vezes contra o destróier USS Mason como forma de contra-ataque porque os Estados Unidos forneceram apoio aéreo aos sauditas. Em janeiro de 2017, os ­houthis pararam de lançar mísseis balísticos e drones sobre a fronteira terrestre em direção a Riad e, em vez disso, enviaram três barcos suicidas. Também tentaram minar as rotas marítimas. “Se os agressores continuarem a pressionar Hodeidah, e se a solução política atingir um muro, algumas opções estratégicas serão adotadas como um ponto sem retorno, incluindo o bloqueio da navegação internacional no Mar Vermelho”, disse o líder do conselho político houthi, Saleh al Samad. “Os navios passam por nossas águas enquanto nossa população passa fome.”

Israel, por seu lado, percebeu que o Irã, com sua marinha sofisticada, começava a treinar os houthis na utilização de barcos, drones e mísseis para perturbar o tráfego ligado a Israel, inclusive fornecendo equipamento capaz de detectar a origem de um navio. À medida que os houthis obtinham mais vitórias, o patrocínio de Teerã crescia. Era evidente aos olhos israelenses que, em 2019, Abdul-Malik al-Houthi, o líder ­houthi, dirigia cada vez mais sua retórica contra Israel e negava as alegações do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de que o Irã tinha começado a fornecer mísseis de precisão ao Iêmen. “Nosso povo não hesitará em declarar a jihad contra o inimigo israelense e desferir os golpes mais severos contra os alvos sensíveis do inimigo, se ele se envolver em atos estúpidos contra o nosso povo. Nossa posição hostil contra Israel é por princípios humanos, morais e religiosos”, afirmou à época.

Maysaa Shuja al-Deen, do Centro de Estudos Estratégicos de Sanaa, avalia: “As ameaças houthis à navegação israelense não são uma desculpa ou uma tentativa de desviar atenção de suas próprias falhas. Estão profundamente enraizadas em sua ideologia. Eles falam em amaldiçoar os judeus e em morte à América. Seu fundador, Hussein al-Houthi, começou suas palestras por volta da época do 11 de Setembro e da invasão do Iraque pelos Estados Unidos, e elas tratavam muito de um choque de civilizações. É entre muçulmanos e cristãos, um conflito religioso, não é sobre o nacionalismo árabe”.

Assim que a crise de Gaza explodiu, os houthis dispararam inicialmente mísseis ineficazes contra a cidade portuária israe­lense de Eilat, insistindo que só desistiriam quando Israel permitisse a entrada de ajuda humanitária em Gaza. Mas, ao tirar partido do território que tinham capturado desde 2014, suas táticas evoluíram rapidamente para uma campanha de ataques de surpresa aos navios, que espalharam o caos pelas cadeias de abastecimento mundiais. Desde ao menos 12 de novembro, de acordo com o Centro de Sanaa, “as forças houthis têm treinado recrutas para equipes de assalto anfíbio, com exercícios que incluem simulações de lançamento de mísseis visando navios e de ataques aéreos. Eles também ampliaram gradualmente seus alvos, de navios com bandeira israelense para navios que comercializam com Israel”.

Em Sannaa, a população demonstra o ódio aos EUA. Biden continua mergulhado em um conflito desgastante – Imagem: Atta Kenare/AFP e Mandel Ngan/AFP

Al-Deen argumenta que a resposta interna positiva apenas encorajará os ­houthis: “Os iemenitas são pró-palestinos, e esse sentimento tem crescido a níveis sem precedentes nos últimos três meses”. Onde outros grupos hesitaram, os houthis mostraram-se ousados, ao mesmo tempo que produziam vídeos de propaganda, como um helicóptero enfeitado com a bandeira palestina pousando no convés do navio de carga Galaxy Leader, que navega no Mar Vermelho.

Os houthis ficaram particularmente orgulhosos quando um entrevistador da BBC perguntou a Mohammed Ali ­al-Houthi, integrante do Conselho Supremo Houthi, por que razão consideravam adequado interferir na Palestina, “a tantos quilômetros de distância”. Ele respondeu: “Quanto a Biden, ele é vizinho de Netanyahu? Vivem no mesmo apartamento, e o presidente francês vive no mesmo andar e o primeiro-ministro britânico no mesmo edifício?”

Abdulghani al-Iryani, também do Centro de Sanaa, afirma: “O campo­ ­anti-houthi no Iêmen está pasmo. As poucas declarações feitas contra os houthis desde o início de sua operação de apoio à Palestina foram severamente criticadas pelo público iemenita. O sentimento é expresso numa frase comum: ‘Meu irmão e eu estamos contra o nosso primo, e meu primo e eu estamos contra o estranho’. Cidadãos de todos os matizes exigiram que os porta-vozes dos grupos anti-houthi ‘calassem a boca’”. Na verdade, alguns líderes houthis contataram seus adversários políticos de longa data no partido Islah, para ver se farão causa comum contra Israel.

Os Houthis são mais preparados e equipados do que imaginam certos analistas ocidentais

Al-Deen insiste que os houthis não serão dissuadidos pelos ataques ocidentais, mas os verão como um presente, até mesmo como um sargento de recrutamento. “Eles passaram anos na luta contra os sauditas, absorvendo perdas. Não são um exército clássico com bases militares estáticas. As milícias mudam as regras da guerra e, com o apoio do Irã, têm agora capacidade e experiência para fabricar drones no país. Os Estados Unidos e o Reino Unido deram avisos muito extensos de que isto estava prestes a acontecer, por isso não houve elemento-surpresa.” Os últimos dias, afirma, “farão os houthis acreditarem que já não são atores locais, mas atores regionais legitimados por direito próprio a confrontar diretamente a América”. Os houthis podem até disparar mísseis contra o Bahrein, único país árabe que apoiou os ataques aéreos em defesa da liberdade de navegação.

Farea al-Muslimi, do programa para o Oriente Médio da Chatham House, alerta: “Os ­houthis são muito mais experientes, preparados e bem equipados do que muitos comentaristas ocidentais imaginam. Sua audácia e a disposição para escalar a atividade diante de um desafio são sempre subestimadas”. O grupo também sabe que a aliança naval militar que apoia os Estados Unidos é tênue. O Egito, apesar de obter receitas provenientes do Canal de Suez, recusou-se a apoiar os ataques aéreos norte-americanos. Nenhum país árabe, exceto possivelmente os Emirados Árabes Unidos, tem a coragem de contestar a visão houthi dos corajosos iemenitas que enfrentam o poderio dos EUA. A Arábia Saudita teme que sua passagem de saída do Iêmen esteja em vias de ser rasgada.

O ataque com mísseis pode ser visto pelo Ocidente como a única opção, mas não é gratuito. Os drones houthis são baratos. Em contraste, os franceses gastam perto de 1 milhão de euros em cada míssil Aster 15 usado pelos franceses e pelos britânicos para afastar os drones houthis. Esta guerra tem o potencial de ser longa e dispendiosa, talvez travada em diferentes níveis de intensidade. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1294 de CartaCapital, em 24 de janeiro de 2024.

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