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Barril de pólvora

O Oriente Médio depois do genocídio em Gaza e das outras incursões de Israel

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Ninguém mais se comove com a dor dos palestinos. Netanyahu está fortalecido – Imagem: Eyad Baba/AFP e Maayan Toaf/GPO
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Os ataques do Hamas e as ações militares de Israel após 7 de outubro de 2023, principalmente o genocídio em Gaza, repercutiram significativamente na ordem regional, marcando o fim de uma longa década após as revoltas árabes. A Questão Palestina reassumiu a centralidade tanto nas relações entre os países do Oriente Médio como na dimensão global, reavivando a tensão sempre presente entre regimes e povos. O fim do regime de Bashar al-Assad na Síria, em 8 de dezembro de 2024, é outra consequência das revoltas iniciadas nesse país em 2011 e que colocam a região em novas configurações geo­políticas. A estrutura das alianças regionais foi alterada de tal forma que a sectarização da política regional, uma das características, ao menos aparente, após 2011, perdeu força. Divisões e conflitos entre sunitas e xiitas foram suplantados pela Questão Palestina como elemento de mobilização na “rua árabe”. O Hamas, sunita, recebeu auxílio dos movimentos xiitas no Iraque, Líbano, Síria e Iêmen que constituem o Eixo de Resistência, fazendo alusão a uma oposição política aos interesses ocidentais em aliança com Israel.

O momento decisivo que indicou a superação das divisões étnico-religiosas foi a distensão, em março de 2023, entre a Arábia Saudita, árabe e sunita, e o Irã, persa e xiita, que desde então têm mantido uma crescente aproximação diplomática. Nesse episódio há outro fato extremamente importante: a presença da China em questões geopolíticas extremamente sensíveis no Oriente Médio, enquanto a rivalidade entre os dois países sempre foi explorada eficientemente pelos EUA.

Se é verdade que o fim do regime de Assad é uma derrota política de ­Vladimir Putin, por outro lado é preciso destacar que a Rússia vem estabelecendo, nos últimos anos, sólidas relações econômicas e militares com a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos. De 2021 a 2022, o comércio entre Rússia e EAU aumentou em 62%, atingindo os 9 bilhões de dólares. Com a Arábia Saudita, o valor das trocas comerciais chegou aos 2 bilhões. As aproximações da Rússia com as monarquias do Golfo permitiram ao país contornar os efeitos das sanções impostas por EUA e União Europeia, devido à guerra na Ucrânia.

A Questão Palestina voltou ao centro das tensões regionais

Com a queda do regime sírio, houve comemorações efusivas em Israel, com a ideia de que praticamente havia chegado ao fim a presença do Irã no Levante. Mas não é menos relevante notar que, de certa forma, a Turquia chegou à fronteira de Israel, já que o HTS tem se configurado como um proxy de Recep Erdogan. Se é verdade que o presidente turco se caracteriza muito mais por sua retórica antissionista do que por ações concretas, é bem provável que o novo governo rejeite a anexação das Colinas de Golã por Israel e não deverá permanecer neutro em relação à Questão Palestina.

De Barack Obama a Donald Trump e Joe Biden, os EUA tinham como objetivo principal a remoção de Assad do poder. Com o novo momento, o que se pode esperar do governo Trump? Poderão os Estados Unidos continuar a defender os seus interesses no Médio Oriente com um menor nível de envolvimento militar e político ou deverão almejar retomar papel de liderança na ordem regional? Para responder a essas perguntas, vale recorrer a um balanço da política externa dos EUA para o Oriente Médio na última década.

Obama tentou concentrar seus esforços de política externa no Leste asiático, buscando frear a ascensão da China. Com isso, os EUA paulatinamente diminuiriam sua presença militar no Oriente Médio e Norte da África. Obama teve destaque, por exemplo, em levar adiante um acordo nuclear com o Irã, assinado em 2015 e que resultou na diminuição das sanções econômicas ao país. Contudo, as revoltas árabes e suas diversas consequências − a intervenção da Otan na Líbia, a Guerra na Síria e a ascensão do Estado Islâmico, entre outras − frustraram os planos de Obama e reforçaram a presença dos EUA na região.

A Primavera Árabe, no fim das contas, apressou a chegada de um longo e tenebroso inverno – Imagem: Jonathan Rashad

A situação mudaria radicalmente com a chegada de Trump à Presidência. Além de se retirar do acordo nuclear com o Irã e retomar as sanções econômicas, o republicano fortaleceu a relação especial entre Israel e Estados Unidos. Trump encerrou a ajuda humanitária à Palestina e buscou avançar com seu plano “Paz para a Prosperidade”, que previa a alocação de 50 bilhões de dólares em projetos econômicos e de negócios que promoveriam a criação de um Estado palestino, mas sem quaisquer concessões de Israel. O plano não foi, porém, adiante.

O maior destaque da política de Trump para o Oriente Médio foi a mediação dos Acordos de Abraão, responsáveis por normalizar as relações de Israel com países árabes: Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão. Assinados em 2020, o objetivo dos acordos era alcançar a “paz de mercado” que garantiria a estabilidade regional após os anos turbulentos das revoltas árabes e seus desdobramentos. Entretanto, nessas negociações, não houve qualquer contrapartida aos palestinos, e a Questão Palestina passou a ser cada vez mais ignorada pelas monarquias do Golfo.

Os Acordos de Abraão resultaram numa maior aproximação entre os signatários, principalmente nos campos da segurança e tecnologia. Como resultado do acordo de livre-comércio, as trocas entre Israel e os Emirados Árabes atingiram 3 bilhões de dólares em 2023.

Biden, em geral, manteve o padrão de Trump. Mais importante foi, no entanto, a postura do democrata após 7 de outubro de 2023. Desde o início do genocídio em Gaza, os Estados Unidos patrocinaram Israel com 17 bilhões de dólares em apoio militar e prometeram um pacote de mais 8,7 bilhões em setembro de 2024. Em agosto de 2022, Biden visitou o reino saudita, a fim de convencê-lo não somente a aumentar a produção de petróleo, mas também a incluí-lo nos Acordos de Abraão. A normalização entre Arábia Saudita e Israel garantiria aos EUA uma estabilidade entre seus dois maiores parceiros no Oriente Médio, tendo como consequência o fortalecimento da coalizão anti-Irã.

Com Trump, a solução do conflito na Palestina tende a privilegiar as ambições territoriais israelenses

Contudo, o genocídio em Gaza paralisou essas negociações. Em pesquisa de opinião realizada com parte da população saudita, no fim do ano passado, 96% responderam não ser a favor da normalização com Israel. A pressão da “rua árabe” geralmente traz efeitos para a reorientação das políticas externas das monarquias regionais. A novidade é que a monarquia saudita elencou a criação de um Estado palestino como requisito para a normalização com os israelenses.

Além disso, a Arábia Saudita tem explorado com habilidade essas disputas pela hegemonia no território. Nos últimos anos, o reino saudita tem fortalecido as relações não apenas com a Rússia, mas também com a China, atualmente a grande ameaça à hegemonia econômica dos EUA. As exportações chinesas para a Arábia Saudita caminham para um recorde, com 40,2 bilhões de dólares nos primeiros dez meses de 2024, acima dos 35 bilhões do mesmo período do ano passado.

Os investimentos sauditas no setor de petróleo e gás da China, bem como o investimento chinês no setor de energia renovável saudita, estão impulsionando a expansão do comércio. Essa cooperação econômica se intensificou a partir de março de 2023, quando a China realizou o processo de distensão entre a Arábia Saudita e o Irã.

O Acordo de Abraão está em xeque neste momento. A expulsão de Assad é uma derrota de Putin – Imagem: Presidência da Rússia e Arquivo Trump/Casa Branca Oficial

Em setembro de 2020, na ocasião da assinatura dos Acordos de Abraão, Trump declarara que, “após décadas de divisão e conflito”, marcava-se “o amanhecer de um novo Oriente Médio”. Mais de quatro anos depois, o republicano volta à Presidência em um novo contexto geo­político, muito distante da estabilidade que havia imaginado.

Independentemente do novo contexto, o próximo presidente dos EUA tem mantido a mesma avaliação que fez a respeito da atuação do país na região durante sua campanha eleitoral de 2016. Naquela ocasião, descreveu a ocupação norte-americana no Afeganistão como desperdício de dinheiro, e assim que assumiu o governo deu início às conversações diplomáticas com o Taleban para a retirada das tropas. Diante dos acontecimentos recentes, com a queda do regime de ­Assad, Trump disse que a Síria está um caos e que Washington não deve envolver-se.

O transnacionalismo, termo empregado para definir a ação internacional de Trump, não segue propriamente nenhuma diretriz político-militar conectada a uma grande estratégia. De acordo com o seu ethos comercial e político, o que interessa é o que ele tem a ganhar em uma transação específica, não importando objetivos de médio e longo prazo. Por isso, avaliamos que Trump priorizará, fundamentalmente, dois eixos de ação que de alguma forma sempre se relacionam mais às ferramentas econômicas do que propriamente aos instrumentos geopolíticos. De um lado, voltará a usar a “pressão econômica máxima” contra o Irã. De outro, retomará os Acordos de Abraão, buscando incluir mais monarquias do Golfo, especialmente a Arábia Saudita. Por fim, provavelmente reviverá o Plano Kushner para a Palestina: uma “proposta de paz” fraudulenta e que diz mais respeito ao avanço das anexações e assentamentos israelenses do que a um futuro Estado palestino soberano e independente. Nessa dinâmica, é muito provável que os palestinos não tenham qualquer contrapartida, que Gaza permaneça uma terra arrasada, e que as relações especiais entre EUA e Israel se mantenham como são há décadas. Todavia, é fato também que as lutas contra forças hegemônicas também têm aumentado, seja no Oriente Médio ou na própria sociedade norte-americana. A turbulência no Oriente Médio deverá manter-se em novas configurações geopolíticas. •

Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Barril de pólvora’

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