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A Otan virou a desculpa para as nações que não querem interferir de forma mais incisiva na invasão da Ucrânia

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Teatro. As forças da organização treinam, enquanto esperam os países associados decidirem se querem ou não uma solução rápida para a guerra - Imagem: Ministério da Defesa da França/OTAN
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Um escudo dissuade um inimigo e significa determinação. Também é algo para se esconder a fim de evitar uma briga. Desde que a Rússia invadiu a Ucrânia, a Organização do Tratado­ do Atlântico Norte tem sido usada para ambos os fins por políticos norte-americanos e europeus de graus de valor variados. Mas e se o escudo estiver quebrado ou fundamentalmente defeituoso? As potências ocidentais podem estar prestes a descobrir. A cúpula da Otan em Madri neste mês é anunciada como sua reunião “transformadora” mais importante desde a era da Guerra Fria. Espere muitas autocongratulações sobre como a aliança de 30 países se uniu para proteger o “mundo livre” da agressão russa. Grandes pontos de interrogação permanecem, no entanto.

Na Polônia, em março, Joe Biden, presidente dos Estados Unidos e chefe de fato da organização, deu o tom. Ele prometeu defender “cada centímetro do território da Otan com toda a força de nosso poder coletivo” – mantendo-se fora da guerra. Meses depois, Biden continua irritantemente vago sobre os resultados em longo prazo. Embora muitos aliados tenham se reforçado, importantes integrantes europeus da Otan se escondem atrás de uma aliança que antes desprezavam e negligenciavam. Eles a usam para evitar compromissos nacionais dispendiosos com Kiev que possam irritar Moscou.

Ao sonhar com a autonomia estratégica da União Europeia, o presidente francês, Emmanuel Macron, prefere falar a agir. O primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz, resume a hesitação e o ­atraso. ­Viktor Orbán, o premier húngaro que quebrou as sanções, muitas vezes parece defender o outro lado. As tentativas cinicamente egoístas do presidente encrenqueiro da Turquia, Recep Tayyip ­Erdogan, de sabotar os pedidos de adesão da Finlândia e da Suécia também prejudicam uma frente unida.

Jens Stoltenberg, o inofensivo secretário-geral da Otan, lutará para reparar essas fissuras. A Polônia e outros Estados da “linha de frente” querem uma abordagem mais dura, incluído o posicionamento permanente de tropas adicionais, armas pesadas e aviões nas fronteiras da Rússia. Em resposta, autoridades da Otan prometem decisões “robustas e históricas”.

Quanto à Ucrânia, sua liderança praticamente abandonou as esperanças de adesão, solenemente prometidas na ­cúpula da Otan em Bucareste em 2008, e parou de pedir uma intervenção militar direta. “Claro que ouviremos palavras de apoio… estamos muito gratos por isso”, disse seu ministro das Relações Exteriores, Dmytro Kuleba. Por ter anteriormente acusado a Otan de “não fazer nada”, ele não espera ações concretas em Madri sobre a adesão ou, por exemplo, a “segurança no Mar Negro”.

Essa última observação se referia ao imperdoável e contínuo fracasso dos EUA e da Europa em desafiar o bloqueio ilegal de Moscou aos portos da Ucrânia, que gera escassez global de alimentos. É uma das muitas áreas em que a Otan poderia e deveria exercer maior pressão contra as forças russas, ajudando assim a convencer Vladimir Putin a encerrar sua guerra genocida.

Por que a Otan não faz mais? Tomados em conjunto, todos os fundamentos e desculpas para passividade e inação produzem uma imagem de uma aliança significativamente menos unida, poderosa e organizada do que seus admiradores pretendem.

Por que a organização não faz mais para encerrar o conflito?

Apoiar inicialmente a Ucrânia, embora à distância, deu um impulso à Otan. Sua avaliação melhorou em relação ao ponto baixo do desastre da retirada do Afeganistão no ano passado. Mas se a guerra continuar, como se espera, se ambos os lados ficarem desesperados, se o impasse diplomático se aprofundar e se a ameaça de um conflito mais amplo aumentar, as fraquezas e vulnerabilidades há muito não resolvidas da Otan se tornarão mais óbvias e mais perigosas para aqueles que se escondem atrás de suas muralhas. Seu blefe pós-soviético poderá finalmente ser denunciado.

Seria irreal esperar unanimidade política perfeita numa organização tão grande. Mas o fato de cada integrante ter uma opinião equivalente quando, em termos de capacidade militar, eles são absurdamente desiguais dificulta a tomada de decisões rápidas e ousadas. Uma provocação nuclear ou química russa provavelmente produziria uma cacofonia paralisante de vozes conflitantes na Otan – e Putin certamente sabe disso. Ao mesmo tempo, há enorme dependência dos EUA, uma superpotência militar sem cujo acordo nada acontece e por trás de cujo poder os retardatários espreitam, recusando-se a pagar sua passagem.

Organizacional e militarmente, também, a Otan está em toda parte. Possui três sedes de comando conjunto – na Itália, na Holanda e nos EUA. Mas seu principal general está baseado na Bélgica. Falta interoperabilidade dos sistemas de armas de diferentes países, assim como exercícios conjuntos de treinamento, fornecimento de armas e compartilhamento de inteligência. A Otan também está cada vez mais sobrecarregada, presa entre uma ameaça russa na área euro-atlântica e desafios no Indo-Pacífico de uma China agressivamente expansionista.

Líderes do Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia são esperados em Madri. Seu pesadelo compartilhado: um eixo global sino-russo totalitário “sem limites”, com ecos do Pacto Nazi-Soviético de 1939. A Otan deve publicar seu “conceito estratégico” para dez anos sobre como lidar com tudo isso, além de terrorismo transnacional, mudança climática desestabilizadora, guerra cibernética e a ascensão de Estados antidemocráticos. É uma missão difícil.

Também está atrasada a nova estratégia de segurança nacional do governo ­Biden focada na Ásia, que teve de ser recalibrada às pressas após a invasão da Ucrânia. Para avançar efetivamente nessas várias frentes, a Otan deve, no entanto, olhar para trás, admitir erros do passado e aceitar alguma responsabilidade pela crise atual.

Ao manter a Ucrânia no limbo da filiação enquanto não pune Putin por crimes de guerra na Chechênia e na Síria, seu ataque de 2008 à Geórgia, sua anexação da Crimeia e sua guerra por procuração pós-2014 em Donbas, os líderes ocidentais complacentes involuntariamente abriram caminho para a catástrofe de hoje.

Após o colapso soviético em 1991, a Otan deixou cair a bola. Como torcedores de futebol a invadir o campo antes do apito final, eles pensaram que estivesse tudo acabado. Mas não estava e não está.

Neste momento, Putin bate no escudo e coloca o Ocidente à prova. Se sua abordagem de aversão ao risco não mudar, em breve poderá não haver mais onde se esconder. A Otan falhará novamente? •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1213 DE CARTACAPITAL, EM 22 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Atrás do biombo”

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