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A preservação da “zona cinzenta”

Na região dos atentados, pessoas diferentes coexistem bem. Justamente por isso o Estado Islâmico estrategicamente selecionou esses alvos

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Logo após o massacre contra o Charlie Hebdo, o Estado Islâmico publicou em sua revista um editorial celebrando e incentivando a “extinção da zona cinzenta.” O que seria essa tal zona cinzenta? Justamente a parcela da humanidade que no dia-a-dia pratica sua resistência contra uma visão de mundo maniqueísta onde a grade interpretativa para todo e qualquer tipo de conflito ou tragédia é um suposto “choque entre civilizações” (termo cunhado pelo cientista político Samuel Huntington).

Ou seja, a zona cinzenta é aquele espaço social onde é concebível a existência de uma garota muçulmana que curte rock, escolhe vestir um hijab por conta própria, namora um ateu, e faz suas orações diárias.

No dia 13 de novembro terroristas do Estado Islâmico conduziram um ataque ainda mais audacioso, matando pelo menos 129 pessoas que buscavam um pouco de bonheur. Provavelmente foi o pior massacre em Paris desde a supressão da Comuna em 1871, quando o próprio Estado Francês fuzilou milhares de parisienses.

“Provavelmente” porque o outro concorrente a esse titulo infame é o massacre de argelinos pela polícia em 1961, uma tragédia que por anos foi apagada da memoria coletiva nacional. Um dos estudos mais rigorosos sobre o assunto estima que policiais assassinaram mais do que 120 argelinos — um exemplo de como o terrorismo não é exclusividade de uma sociedade em particular.

Quanto ao recente atentado do Estado Islâmico, o objetivo foi justamente efetuar um golpe critico contra a zona cinzenta. Afinal de contas, o 10o e 11o arrondissements, onde estavam a maioria das vítimas, formam um reduto cosmopolita em Paris — só na Rue Saint-Denis, no 10o, você pode saborear um sanduiche curdo enquanto observa a coexistência de pais esperando filhos saírem da escola, prostitutas esperando homens saírem do trabalho, e açougues Halal esperando clientes saírem da mesquita.

A Fox News, sensacionalista e conservadora como sempre, irresponsavelmente chamou o 10o arrondissement de uma das “zonas proibidas” em Paris — lugares onde uma suposta hegemonia Islâmica substituiu o Estado Francês e instalou a Sharia. Curiosamente, não se tem notícia de nenhuma mulher de mini saia sendo punida por ir ao Syndicat (um bar badalado na vizinhança).

Sim, conflitos diários acontecem e continuarão a acontecer. Um senhor (muçulmano, cristão, judeu ou laico) pode reclamar da vulgaridade (tanto das prostitutas quanto dos jovens bebendo na rua). E, mais urgente, existem as questões da exploração sexual das prostitutas (em sua maioria chinesas) e do preconceito sofrido por jovens de descendência árabe ou africana, que enfrentam obstáculos sistêmicos no mercado de trabalho.

Mas no meio dessa bagunça, desse melting pot (expressão adotada pelos próprios franceses), as pessoas coexistem e fazem o melhor que podem para as coisas funcionarem. A criatividade humana fermenta e uma certa cosmopolis — imperfeita, como tudo terrestre — é construída com a práxis do quotidiano. On se débrouille, como dizem por lá.

É justamente por isso que o Estado Islâmico cruelmente, mas estrategicamente, selecionou esses alvos. Afinal, nada ameaça mais o seu projeto terrorista e divisório do que coexistência entre pessoas de credos, cores, sexos, genros e nacionalidades diferentes. Cidadãos de uma confusa “zona cinzenta.” Jovens de diversas origens, em grande parte progressistas, abertos ao multiculturalismo por serem sedentos pela rica diversidade que brota nesses espaços — a geração Bataclan.

Vozes mais beligerantes, como o Front National na França, elementos radicais do partido Republicano nos EUA, e membros da Nova Direita Brasileira alertam freneticamente sobre a suposta incompatibilidade entre a “Civilização Ocidental” e o “Islã” — concebido de maneira essencialista como uma religião onde todos partilham uma mesma mentalidade anti-moderna insuscetível ao desenrolar da história.

As diatribes de Marine Le Pen e Donald Trump fazem parte de uma longa linhagem de políticas de exclusão interligadas ao pensamento liberal sobre o qual foi construído os regimes políticos na Europa e na América. Como a historiadora Joan Scott demonstra, durante a Revolução Francesa e através da Era Moderna mulheres francesas enfrentaram um difícil paradoxo: como insistir na irrelevância de diferenças entre os sexos para o direito à cidadania quando esse mesmo discurso trazia à tona a ideia de diferença que era usada para subjuga-las? E foi no auge da popularidade das ideias liberais que a Grã-Bretanha expandiu o seu império autocrático, um paradoxo para o qual o cientista político Uday Singh Mehta encontra a chave na doutrina de John Locke, onde ter “liberdade” é dependente em ter “razão,” um privilégio do homem ocidental.

Políticos como Le Pen visam capitalizar no terror recente para reforçar uma política de exclusão contra imigrantes, em especial aqueles que não são circundados por uma identidade dita “ocidental” — uma construção abstrata que tomou forma mais definida no século XIX, ganhou tração ainda maior durante a Guerra Fria, e continua servindo mais como ferramenta política do que como uma categoria de analise útil para entender os dilemas desencadeados pelo aceleramento da globalização e de um mundo feito de demasiadas conexões para ser compreendido de maneira binária, como demonstra o historiador francês Serge Gruzinski em seu livro mais recente.

Ironicamente, o discurso do Front National e o editorial do Estado Islâmico são duas faces da mesma moeda. Ambos visam a extinção da “zona cinzenta” — o Front National para recuperar a pureza de uma identidade francesa que na verdade nunca existiu; o Estado Islâmico para convencer quase 1.6 bilhões de muçulmanos de que a coexistência é impossível pois eles não são bem-vindos fora do califado aspirado pelos terroristas.

Politicas de exclusão são fomentadas em grande parte pela relutância em reconhecer a humanidade naquilo que é diferente. Hoje os que correm o risco de serem excluídos são aqueles que buscam refugio do mesmo tipo de terror daquela Sexta-Feira 13 em Paris, exceto que no caso deles o terror é diário. Até que ponto se estende o sentimento por trás da hashtag #porteouverte? Ao pensarmos numa resposta é bom manter em mente as tendências universalistas e inclusivas da Revolução Francesa, ao invés da paranoia e radicalismo do Terror, que resultou em políticas contrárias aos direitos civis adquiridos nos anos anteriores e desencadeou um derramamento de sangue excessivo em nome de uma visão pura da Republica.

E nesse momento onde decisões politicas importantes estão sendo tomadas sob grande tensão é importante lembrar que o massacre dos argelianos em 1961 não foi um evento anômalo, mas sim a expressão paroxismal de uma politica repressiva que concebia todos argelianos muçulmanos como potenciais inimigos do estado.

Ao invés de categorias herméticas e essencialistas, devemos seguir o conselho do intelectual palestino (mas acima de tudo cosmopolita) Edward Said, que faleceu em 2003. Em uma critica voraz à tese de Huntington, Said escreveu, “Vivemos tempos de tensão, mas é melhor pensar em termos de comunidades poderosas e impotentes, e recorrer à politica secular da razão e da ignorância e dos princípios universais da justiça e da injustiça, do que sair em busca de vastas abstrações que talvez tragam uma satisfação momentânea mas oferecem pouco autoconhecimento e analise informada.”

Um dos alvos atacados pelos terroristas foi o Petit Cambodge, um restaurante querido no 10o arrondissement, e onde você pode encontrar um dos melhores bobuns de Paris. 40 anos atrás uma outra onda migratória causava extrema ansiedade na Europa e nos Estados Unidos. Milhões de refugiados da Indochina — uma ex-colônia Francesa — fugiam de um conflito intenso engendrado por anos de colonialismo, uma longa batalha por independência, uma traumática “intervenção” Americana, e a instalação de regimes comunistas autoritários.

Assim como os sírios de hoje, esses refugiados arriscaram suas vidas embarcando em barcos inadequados, muitos dos quais não resistiram as ondas do alto mar. Eles eram vietnamitas, laocianos e, sim, cambojanos. E na zona cinzenta eles, nós, e os que vierem continuarão a se débrouiller. Afinal, somente assim Paris, a Paris que desde o Iluminismo é vista como uma certa capital da humanidade, continuará a viver honestamente sob o seu lema: Fluctuat nec mergitur — “Ela é sacudida pelas ondas, mas não afunda”.

 

 

* Patrick Luiz Sullivan De Oliveira é doutorando em história na Princeton University e, morou em Paris no 10o e 11o arrondissements.

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