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Até onde vai a bandeira branca do Irã?

A janela de oportunidade está aberta, mas os EUA devem controlar sua prepotência, e seus aliados, para obter um avanço diplomático relevante

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O mais importante acontecimento da Assembleia Geral da ONU, marcada para esta semana, pode se dar longe dos holofotes. Há rumores de que o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, e seu colega iraniano, Hassan Rouhani, podem se encontrar nos bastidores em Nova York. A reunião, ainda que breve, marcaria um pico de boa vontade entre os dois países, cujas relações diplomáticas foram rompidas há 34 anos. Seria, também, um impulso para o processo de reconciliação aberto pela eleição de Rouhani, em agosto, que poderia culminar com um acordo sobre o programa nuclear iraniano. Antes, disso, no entanto, há obstáculos importantes a serem ultrapassados.

Desde que foi eleito, Rouhani realizou uma série de gestos de boa vontade. Em 4 de setembro, data do ano novo judaico em 2013, desejou pelo Twitter um “abençoado Rosh Hashanah” a todos os judeus,  no que foi acompanhado por seu ministro do Exterior, Javad Zarif. O último, ao ser interpelado pela filha de uma congressista norte-americana, disse que o Irã “nunca negou” o Holocausto e, sem citar o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad, afirmou que quem supostamente fazia isso “se foi”. Em 15 de setembro, também pelo Twitter, Rouhani alardeou a primeira participação de uma atleta iraniana no campeonato mundial de triatlo, usando a hashtag #igualdadedegênero. Dias depois, 11 presos políticos iranianos foram soltos, entre eles Nasrin Sotoudeh, uma conhecida defensora dos direitos humanos. Mais importante, Rouhani trocou cartas com Obama, um fato comentado em público, de forma elogiosa, pelos dois líderes.

Há razões para crer que a postura do novo presidente iraniano é genuína. Para tanto, é preciso relembrar como ele chegou ao poder.

Na mistura de teocracia e democracia que rege a política iraniana, qualquer um pode ser candidato à presidência. Um Conselho de Guardiães, no entanto, escolhe os postulantes “aceitáveis”. Depois, ocorre a eleição. Rouhani foi um dos oito candidatos e, com o slogan “prudência e esperança”, obteve uma votação maciça e surpreendente. Sua vitória foi entendida como um sinal de que a população estava cansada da retórica inflamada do governo Ahmadinejad, que só fez isolar o Irã da comunidade internacional. O símbolo do desastre desta política externa seriam as sanções internacionais, impostas por conta do programa nuclear iraniano, que devastaram a economia e dificultam a importação até de itens básicos, como medicamentos e peças de automóveis.

Apesar do recado das urnas, Rouhani não teria conseguido o cargo sem a anuência do aiatolá Ali Khamenei, o líder supremo do Irã e “chefe” do presidente. Talvez numa indicação do que esperava das eleições, Khamenei abriu uma porta para mudanças em março, durante discurso do ano novo persa. Sua fala foi, nas palavras do dissidente Akbar Ganji em perfil do aiatolá publicado na revista Foreign Affairs, “surpreendente”, pois Khamenei pela primeira vez disse explicitamente que não se opunha a negociações diretas com os Estados Unidos. Como afirmou Suzanne Maloney em ensaio sobre o Irã publicado pelo instituto Brookings neste mês, Rouhani parece ter sido incumbido por Khamenei com a tarefa “de estancar a crise e salvar a revolução iraniana de suas próprias falhas”.

A missão de Rouhani não será nada fácil. O novo presidente do Irã está longe de ser um reformista, grupo que no fim dos anos 1990 tentou mudar a direção da revolução iraniana. Rouhani é próximo de Khamenei e dos setores conservadores da política local. Ainda assim, como também lembrou Suzanne Maloney, Rouhani se diz membro da “facção razoável” do conservadorismo, a que busca, antes de tudo, resolver problemas (como a economia precária e as relações com os EUA). Na comunidade de Inteligência dos EUA, Rouhani é visto como um “moderado”, segundo contou a revista Foreign Policy na sexta-feira 20. O atual presidente do Irã foi um dos membros da revolução com os quais a administração de Ronald Reagan negociou armas em 1986, no escândalo que ficou conhecido como Caso Irã-Contras. Para conseguir um acordo com os EUA, Rouhani terá de tentar neutralizar a linha-dura do regime, nomeadamente a Guarda Revolucionária, força armada paralela ao Exército regular, que responde diretamente a Khamenei e detém um império econômico. No último dia 16, Rouhani fez um delicado discurso no qual pediu para a Guarda, diante da crise econômica, atuar menos na economia e abrir espaço para o setor privado. Foi uma prova clara de que, com cuidado, Rouhani tem liberdade para fazer mudanças no Irã. O próprio presidente do Irã fez questão de afirmar isso. Em editorial publicado pelo jornal The Washington Post na sexta-feira 20, Rouhani urgiu aos líderes mundiais para “aproveitar a oportunidade apresentada pela recente eleição iraniana”. “Exorto-os a tirar o máximo do mandato para o engajamento prudente que o meu povo me deu e para responder verdadeiramente aos esforços do meu governo para o diálogo construtivo”.

A veracidade das ações de Rouhani e do Irã só poderá ser provada com ações. Tais ações não ocorrerão num vácuo, no entanto, mas em contrapartida aos atos dos Estados Unidos. As negociações de 2012 entre o Irã e um grupo formado por EUA, Reino Unido, França, Alemanha, Rússia e China travaram pois foram exigidas concessões por parte de Teerã como condição para o afrouxamento das sanções. Essa postura prepotente, liderada pelos Estados Unidos, é compreensível, pois o Irã deu diversos motivos para o mundo desconfiar que seu programa atômico é militar, mas também é infrutífera do ponto de vista diplomático. O programa nuclear é, para os iranianos, incluindo os reformistas, uma questão de orgulho nacional – aspecto ressaltado por Rouhani no artigo do Washington Post – o que cria dificuldades para as concessões. Ao desconsiderar esta dimensão da polêmica, as potências contribuem para a manutenção do impasse.

Caso o governo dos Estados Unidos esteja verdadeiramente interessado em chegar a um acordo com o Irã, também terá obstáculos. Há uma fortíssima pressão por parte dos aliados dos Estados Unidos para que o programa nuclear iraniano seja desmantelado, preferencialmente por via militar. Esta campanha é liderada publicamente pelo primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, mas nos bastidores ele tem um firme apoio de países como Arábia Saudita e Jordânia, cujo maior temor regional é o Irã. Para comprovar isso, basta lembrar que a primeira grande revelação do WikiLeaks foram os inúmeros pedidos de países árabes para que Washington acabasse de um vez com o programa nuclear do Irã.

Temos, então, a seguinte situação. De um lado, o Irã, que alega ter um programa nuclear pacífico e que após oito anos de uma política externa inflamada parece estar disposto a negociar. Do outro, os Estados Unidos, cujo presidente prefere a via diplomática à militar. O que falta é algo que una os dois, um plano verossímil para um acordo entre as partes. Como afirmam diversos analistas, é preciso estabelecer ponto a ponto quais serão as concessões por parte do Irã e quais serão as contrapartidas da comunidade internacional, com mecanismos verificáveis para cada uma delas. Neste processo, será preciso garantir que um lado não seja visto como ingênuo e o outro, como humilhado. Se houver boa vontade das duas partes, o impasse pode ser rompido. É bom que as negociações andem rápido e terminem de forma positiva para os dois lados, antes que a linha-dura do regime iraniano tire a bandeira branca das mãos de Rouhani.

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