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Ataque à Síria é sobre poder, não sobre os civis

Sem justificativa legal para ofensiva, EUA apelam para a moralidade, a mesma que foi esquecida enquanto 100 mil pessoas morreram

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O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, ainda não tomou sua decisão final. Parece iminente, entretanto, uma ofensiva contra a Síria, em retaliação ao aparente ataque com armas químicas realizado nos subúrbios de Damasco no último dia 21. Sem a possibilidade de obter um mandato legal para o bombardeio – bloqueado pela Rússia e pela China – Washington busca dar um verniz de legitimidade à ação. Será uma tarefa difícil esconder que o mundo não está diante da defesa da moralidade, ou do que “é certo”, mas de uma clássica disputa por poder.

A única forma de um país, por mais poderoso que seja, usar a força militar em consonância com a lei internacional é por meio de uma resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Como a Rússia e a China vêm, desde 2011, protegendo a Síria diplomaticamente, Washington busca a alternativa da “legitimidade”. Este expediente já foi usado algumas vezes, como no caso da ex-Iugoslávia nos anos 1990 e do Iraque, em 2003. Nessas duas oportunidades, os EUA conseguiram formar grandes coalizões que atuaram em cima de bases sólidas, ou tidas como. Na Iugoslávia, eram os massacres promovidos por Slobodan Milosevic. No Iraque, duas mentiras propaladas pelo governo George W. Bush: as armas de destruição em massa de Saddam Hussein e sua aliança com a Al-Qaeda.

Hoje o caso contra a Síria é bem mais frágil, até porque não há precedentes de retaliação contra uso de armas químicas. Na quinta-feira 29, quando buscou autorização preliminar do Parlamento britânico para usar a força contra a Síria (o que foi rejeitado), o primeiro-ministro do Reino Unido, David Cameron, não conseguiu comprovar que foi mesmo o regime de Bashar al-Assad o responsável pelo ataque químico.

Na sexta-feira 30, sob a sombra das mentiras que justificaram a invasão do Iraque dez anos atrás, o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, divulgou parte da inteligência obtida (confira a íntegra, em inglês). Segundo o documento, os EUA têm alto grau de confiança na informação de que Assad vinha preparando o uso de armas químicas, e que teria feito isso em grande escala naquele 21 de agosto. De acordo com Kerry, o número de vítimas é de 1.429 pessoas, sendo 426 crianças. O número é exatamente igual ao que está num balanço da oposição síria – a maior interessada em um ataque contra Assad.

No discurso de sexta 30, Kerry fez uma firme defesa da ação por parte dos EUA e da comunidade internacional, lembrando – com razão, diga-se – que o uso de armas químicas constitui um “horror inconcebível” e que Assad é um assassino. Apesar da veracidade das palavras de Kerry, elas servem para retratar seu país como um ator benévolo e esconder a hipocrisia que está na natureza da política externa norte-americana. Três fatos comprovam isso:

– Os EUA são signatários e ratificaram a Convenção de Armas Químicas, que entrou em vigor em 1997. Pelo acordo, os países se comprometem a não usar esse tipo de armamento e destruir seus estoques. Até hoje, Washington mantém parte de seu arsenal químico;

– Na Guerra Irã-Iraque, os EUA ajudaram Saddam Hussein, então aliado, quando este usou gás mostarda e gás sarin em quatro ofensivas contra as forças iranianas. Documentos da CIA, revelados pela revista Foreign Policy, mostraram que os EUA deram mapas e imagens de satélite, entre outras informações de inteligência, ao Iraque.

– O terceiro fato precisa de uma reflexão mais ampla. Caso o interesse humanitário dos Estados Unidos tivesse uma importância maior que seu interesse nacional – influência política e econômica no Oriente Médio – Washington já teria se mobilizado há muito tempo. Basta lembrar que, segundo informações oficiais da ONU, a guerra civil síria já matou 100 mil pessoas e deixou, por enquanto, 1,9 milhão de refugiados. Se uma intervenção com tropas internacionais já foi descartada (pois seria desastrosa), a outra única forma de colocar fim ao conflito seria um arranjo político, não apenas entre Assad e seus opositores, mas também entre Estados Unidos e Rússia. Neste arranjo, russos e norte-americanos precisariam abrir mão de alguns de seus interesses em nome da proteção aos civis. Tal possibilidade não passa, hoje, de uma fantasia.

Soma-se a isso a opção aparentemente escolhida pelos Estados Unidos para realizar a retaliação contra Assad: ataques “limitados”, realizados a partir de destróieres, com mísseis Tomahawk, cuja capacidade de destruição é imensa e a precisão, nem tanto. Essas características do armamento têm levado o pânico a moradores de Damasco e outras cidades sírias, mesmo aqueles contrários a Assad, como mostraram algumas reportagens da imprensa internacional nos últimos dias. Os civis, aqueles que os EUA supostamente querem proteger, muito provavelmente vão sofrer ainda mais com os ataques norte-americanos.

Na melhor das hipóteses, e também a mais improvável, Assad vai desistir de usar armas químicas contra a população e os guerrilheiros estrangeiros da oposição (e continuar com tanques, caças e mísseis). Na pior das hipóteses, a Síria vai promover sua própria retaliação, dando início à guerra das guerras do Oriente Médio, na qual finalmente haverá um acerto de contas entre o eixo Irã-Síria-Hezbollah e os clientes dos Estados Unidos, em especial a Arábia Saudita e os países do Golfo, a Turquia e, possivelmente, Israel.

No meio termo entre esses dois desfechos extremos, os EUA vão agora castigar Assad, mas eventualmente o ditador retomará o uso de seu arsenal químico. Washington será instada a reagir uma, duas, três vezes, até aleijar todas bases do poder de Assad. Quando isto ocorrer, a Síria estará transformada numa mistura de Afeganistão com Iraque: diversos territórios controlados por pequenos senhores da guerra (entre os quais Assad), com uma divisão sectária profunda (combustível para atentados terroristas), e sem uma força internacional capaz de controlar todos esses atores. Neste estágio, uma solução política, hoje ainda possível, será impraticável. A curto, médio e longo prazo, quem pagará o maior preço pela escolha da intervenção militar em detrimento de uma intervenção política será a população síria.

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