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As primeiras marcas

Cientistas buscam a região que assinala o início da indelével interferência humana no ambiente

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O Homo sapiens forjou a própria destruição - Imagem: Kevin Webb/NHM-London
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Dentro de algumas semanas, geólogos vão escolher um lugar que demonstre de forma mais vívida como os seres humanos modificaram a estrutura da superfície do nosso planeta. Eles escolherão um sítio que, acreditam, ilustra melhor quando nasceu uma nova era – chamada de Antropoceno – e sua antecessora, o Holoceno, chegou ao fim.

O Holoceno começou no fim da última era glacial, 11,7 mil anos atrás, quando as grandes geleiras que cobriam a Terra começaram a recuar. Em seu rastro, os humanos modernos se espalharam inexoravelmente pelo planeta. O Homo ­sapiens floresceu durante o Holoceno, mas nossa expansão teve consequências geológicas. Os minerais que extraímos, os gases que liberamos com a queima de combustíveis fósseis e o material radioativo que produzimos começaram a causar mudanças fundamentais na geologia da Terra.

Como resultado, muitos cientistas acreditam que o Holoceno acabou e deram o nome de Antropoceno ao seu substituto, medida que reconhece pela primeira vez os seres humanos como influenciadores planetários. Quanto à data desse acontecimento, a maioria aponta os anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, quando países de todo o mundo embarcaram numa enorme expansão econômica e industrial conhecida como a “grande aceleração”. Isso desencadeou o Antropoceno, argumenta-se.

Mas exatamente onde essa transformação deve ser registrada ainda não foi decidido. Uma lista de nove locais, incluídos os recifes de coral na Austrália, camadas de lodo (silte) no Canadá e núcleos de gelo na Antártida, foi criada no ano passado pelo Grupo de Trabalho do Antropoceno como os melhores candidatos para oferecer marcadores, em seus sedimentos, que mais bem demonstrem as mudanças que levaram à nova era. Os votos dos integrantes estão em fase de apuração, e uma lista restrita será criada para a consideração final ainda em 2023, início de um processo que vai exigir que três outros órgãos graduados apoiem a proposta. O lugar vencedor será então marcado com uma placa de latão, usada para definir áreas que revelam mudanças nos estratos e significam o início de uma nova época. Uma dessas placas, numa encosta do Monte San Nicola, na região italiana da Puglia, celebra o início do Pleistoceno há 2,6 milhões de anos, o precursor do Holoceno. “Não há dúvida de que a humanidade desempenha um papel importante que influencia a geologia do nosso planeta”, afirma o geólogo e professor Jan ­Zalasiewicz, da Universidade de ­Leicester, no Reino Unido. “A questão é: que local exemplifica melhor essas mudanças?”

Exemplo importante dos impactos causados pelos seres humanos é oferecido pelo alumínio, acrescenta ­Zalasiewicz. “Na natureza, o alumínio metálico puro é muito raro. Existe apenas em pequenas quantidades. Praticamente, todo o nosso alumínio vem de minérios nos quais o metal formou compostos com outros elementos. Nos últimos cem anos, extraímos esses óxidos, hidróxidos e silicatos, os processamos e produzimos cerca de meio bilhão de toneladas de alumínio metálico, usando-o para fazer de tudo, de panelas a aviões.”

A expansão do Homo sapiens provocou mudanças fundamentais na geologia do planeta

Esses bens foram depois descartados quando perderam a utilidade. Embora tenha ocorrido alguma reciclagem, o alumínio metálico – outrora tão raro – espalhou-se pelo planeta. “Por si só, esse seria um sinal claro para alienígenas que pousassem num futuro distante de que algo especial acontecia na Terra neste momento”, acrescenta Zalasiewicz.

O aparecimento de alumínio metálico não é, porém, o único marcador do Antropoceno. Outro exemplo é fornecido pelo elemento plutônio. Ele é muito raro, ou ao menos era até o nascimento da era atômica. Bombas nucleares, testadas na atmosfera, expeliram plutônio que se depositou no solo em quantidades facilmente detectáveis. “Se você examinar algumas medidas do Antropoceno, como o alumínio, verá um crescimento constante em quantidades ao longo do século passado”, acentua o professor Colin Waters, também da Universidade de Leicester. “Mas, até o fim da Segunda Guerra Mundial, não havia plutônio no solo. Então, repentinamente, houve muito dele. Isso o torna um marcador muito bom para o início do Antropoceno e sugere uma data de nascimento no início dos anos 1950.”

Outro sinal claro que indica a entrada em uma nova era geológica é fornecido pelas espécies que ajudamos a disseminar pelo globo, homogeneizando a biologia da Terra nesse processo, entre elas a ostra-do-pacífico e o ­mexilhão-­zebra, este último espalhado da Eurásia na água de lastro descarregada por grandes navios, deslocando os mariscos nativos em grande parte do planeta, incluindo a América do Norte. “Outro indicador é fornecido pelos plásticos que se tornaram amplamente utilizados na década de 1950, que a maioria de nós aponta como o alvorecer do Antropoceno”, acrescenta Waters. “A principal coisa que temos de decidir agora é qual dos locais que selecionamos fornece o sinal mais claro entre as medidas escolhidas – plutônio, alumínio, plástico e outras variáveis – que demonstram uma mudança de época fundamental.”

Esse ponto foi endossado por ­Zalasiewicz: “No futuro distante, dezenas de milhões de anos a partir de agora, as espécies avançadas ainda serão capazes de detectar como modificamos a Terra. Precisamos perceber isso agora. Todos os nossos edifícios e estradas terão desmoronado muito antes, mas as mudanças sutis que fizemos nos sedimentos persistirão e mostrarão que uma civilização global um dia dominou este planeta com efeitos duradouros”. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1241 DE CARTACAPITAL, EM 11 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “As primeiras marcas”

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