Mundo

As palavras e os sentidos da vida

O mundo tem que melhorar, mas conheço pessoas que perguntariam logo: quanto eu ganho nessa?

O mundo tem que melhorar, mas conheço pessoas que perguntariam: quanto eu ganho nessa?
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Não lembro mais que idade eu tinha. Me parece agora que andava aí pela casa dos oito a dez anos. Sei, a meu respeito, algumas coisas daquele tempo. Não muitas. Sei, por exemplo, que nunca tinha ouvido falar em radical, afixos, desinências, essas coisas que fazem hoje as minhas delícias e que, mesmo sem conhecer os nomes, já faziam naquela época. Meu companheiro de então era um irmão cerca de dois, três anos mais velho que eu (sou péssimo em datas e idades), e que, além de uns corretivos muito doloridos na cabeça, me dava uma amizade de que me orgulho e que me faz muito bem até hoje.

Meu irmão e eu gostávamos muito de brincar juntos, e uma das brincadeiras que às vezes nos deixavam horas e horas esquecidos da vida, era a invenção de palavras. Tenho certeza de que a palavra gramática não tinha entrado em meu dicionário ainda, muito menos radicais e afixos (os prefixos e sufixos). Mas era assim que nós inventávamos palavras. E competíamos: quem inventar a palavra mais feia, fica de rei da tarde. E rei existia para ser servido. Estou com sede, vai buscar um copo dágua pra mim. Aproveita e traz uma laranja, mas descascada, ouviu?

Numa daquelas manhãs, falou-se de pesca e um de nós dois propôs o radical. Pescaria, pescatura, pescamento, e, por fim, a mais feia, a que me deu todos os privilégios da tarde, foi pescação (eu a pronunciei com voz fanha, e por isso fui coroado, pois naquele tempo não fazíamos idéia das diferenças entre palavra escrita e palavra oral).

Continuei, pela vida a fora, mexendo com as palavras. Não naquele mesmo nível de ruptura, em que só valiam palavras recém-inventadas. Claro que, de vez em quando, uma transgressãozinha aqui, outra lá, que movimentar-se pelo mundo onde tudo esteja catalogado é chatice muito grande.

Aposentado há vários anos, meu irmão, inconformado com o mundo como o mundo está, vem inventando uma língua. Passa algumas horas, todos os dias, mexendo no computador, onde já tem milhares de arquivos com palavras inventadas por ele, numa escrita que só ele conhece, mas que, segundo sua opinião, é muito mais racional, muito mais fácil e eficiente do que tudo que até hoje se inventou. Mais que isso: sua língua, com vantagens imensas sobre o esperanto, pode ser falada por pessoas de todas as nacionalidades. É uma língua perfeita. Tão perfeita que talvez seja impraticável para seres imperfeitos, como somos nós.

Tinha um amigo que gostava de afirmar que o mundo vai sendo criado à medida que o nominamos. Aliás, descobri mais tarde que era uma ideia mais ou menos tomada de Osman Lins, que assim se manifesta: Duas vezes foi criado o mundo: quando passou do nada para o existente; e quando, alçado a um plano mais sutil, fez-se a palavra. O caos, portanto, não cessou com o aparecimento do universo; mas quando a consciência do homem, nomeando o criado, recriando-o portanto, separou, ordenou, uniu.

Foi assim que descobri a causa de nosso fascínio pelas palavras e seu poder. Éramos crianças, mas já queríamos criar o mundo, um mundo como gostaríamos que fosse. Nós, demiurgos infantis.

Não acredito na praticabilidade da língua de meu irmão. Mas acredito em meu irmão. O mundo, para ele e pessoas como ele insatisfeitas, não está pronto, acabado. O mundo tem que melhorar. E há muito que fazer para que melhore. Conheço pessoas que perguntariam logo: Quanto eu ganho nessa? E passam pela vida ganhando tudo o que perdem ainda em vida ou pelo menos com a vida. E ganham tanto que não conseguem ganhar a própria vida. São aquelas pessoas que visitam uma cidade e dizem que não a viram, porque existiam edifícios muito altos que a escondiam.

Nem sempre sabemos onde e como agir para que o mundo se torne mais habitável, mas um bom começo é perceber que ele vai-se tornando irrespirável.

Boa pescaria para todos nós.

Não lembro mais que idade eu tinha. Me parece agora que andava aí pela casa dos oito a dez anos. Sei, a meu respeito, algumas coisas daquele tempo. Não muitas. Sei, por exemplo, que nunca tinha ouvido falar em radical, afixos, desinências, essas coisas que fazem hoje as minhas delícias e que, mesmo sem conhecer os nomes, já faziam naquela época. Meu companheiro de então era um irmão cerca de dois, três anos mais velho que eu (sou péssimo em datas e idades), e que, além de uns corretivos muito doloridos na cabeça, me dava uma amizade de que me orgulho e que me faz muito bem até hoje.

Meu irmão e eu gostávamos muito de brincar juntos, e uma das brincadeiras que às vezes nos deixavam horas e horas esquecidos da vida, era a invenção de palavras. Tenho certeza de que a palavra gramática não tinha entrado em meu dicionário ainda, muito menos radicais e afixos (os prefixos e sufixos). Mas era assim que nós inventávamos palavras. E competíamos: quem inventar a palavra mais feia, fica de rei da tarde. E rei existia para ser servido. Estou com sede, vai buscar um copo dágua pra mim. Aproveita e traz uma laranja, mas descascada, ouviu?

Numa daquelas manhãs, falou-se de pesca e um de nós dois propôs o radical. Pescaria, pescatura, pescamento, e, por fim, a mais feia, a que me deu todos os privilégios da tarde, foi pescação (eu a pronunciei com voz fanha, e por isso fui coroado, pois naquele tempo não fazíamos idéia das diferenças entre palavra escrita e palavra oral).

Continuei, pela vida a fora, mexendo com as palavras. Não naquele mesmo nível de ruptura, em que só valiam palavras recém-inventadas. Claro que, de vez em quando, uma transgressãozinha aqui, outra lá, que movimentar-se pelo mundo onde tudo esteja catalogado é chatice muito grande.

Aposentado há vários anos, meu irmão, inconformado com o mundo como o mundo está, vem inventando uma língua. Passa algumas horas, todos os dias, mexendo no computador, onde já tem milhares de arquivos com palavras inventadas por ele, numa escrita que só ele conhece, mas que, segundo sua opinião, é muito mais racional, muito mais fácil e eficiente do que tudo que até hoje se inventou. Mais que isso: sua língua, com vantagens imensas sobre o esperanto, pode ser falada por pessoas de todas as nacionalidades. É uma língua perfeita. Tão perfeita que talvez seja impraticável para seres imperfeitos, como somos nós.

Tinha um amigo que gostava de afirmar que o mundo vai sendo criado à medida que o nominamos. Aliás, descobri mais tarde que era uma ideia mais ou menos tomada de Osman Lins, que assim se manifesta: Duas vezes foi criado o mundo: quando passou do nada para o existente; e quando, alçado a um plano mais sutil, fez-se a palavra. O caos, portanto, não cessou com o aparecimento do universo; mas quando a consciência do homem, nomeando o criado, recriando-o portanto, separou, ordenou, uniu.

Foi assim que descobri a causa de nosso fascínio pelas palavras e seu poder. Éramos crianças, mas já queríamos criar o mundo, um mundo como gostaríamos que fosse. Nós, demiurgos infantis.

Não acredito na praticabilidade da língua de meu irmão. Mas acredito em meu irmão. O mundo, para ele e pessoas como ele insatisfeitas, não está pronto, acabado. O mundo tem que melhorar. E há muito que fazer para que melhore. Conheço pessoas que perguntariam logo: Quanto eu ganho nessa? E passam pela vida ganhando tudo o que perdem ainda em vida ou pelo menos com a vida. E ganham tanto que não conseguem ganhar a própria vida. São aquelas pessoas que visitam uma cidade e dizem que não a viram, porque existiam edifícios muito altos que a escondiam.

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Boa pescaria para todos nós.

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