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Artigo: A imprevisibilidade crescente das eleições dos EUA

‘Impacto da Covid-19 será o grande desestabilizador das eleições de 2020’

Biden e Trump
Biden e Trump. Foto: JIM WATSON, Brendan Smialowski/AFP Biden e Trump. Foto: JIM WATSON, Brendan Smialowski/AFP
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Rafael R. Ioris e Roberto Moll*

A pouco mais de um mês para as eleições presidenciais na primeira democracia moderna, a disputa entre Donald Trump, do Partido Republicano, e Joe Biden, do Partido Democrata, para ocupar a Casa Branca permanece indefinida ainda que as últimas pesquisas apontem que o Democrata estaria à frente. Lembremos que a vantagem Democrata tem diminuído ao longo das últimas semanas e que o pleito é definido em um colégio eleitoral composto por eleitores escolhidos em cada estado e não pela soma do voto popular.

A imprevisibilidade da disputa tenderá a permanecer dependendo do comportamento de quatro variáveis-chave: a crise econômica em curso, a dinâmica dos protestos anti-racismo, o voto latino, e a pandemia da Covid-19. Além disso, o aumento no número de pessoas que irão votar pelos correios e a provável incapacidade dos sistema conseguir processar de maneira eficiente esses votos e a morte da ministra da Suprema Corte Ruth Bader Ginburg, no dia 18 de setembro, recolocando a temática culturalista na agenda eleitoral, serão complicadores adicionais e de efeito de difícil mensuração da disputa.

O impacto da Covid-19 será o grande desestabilizador das eleições de 2020 nos EUA, tanto no que se refere às turbulências econômicas e políticas trazidas pela mesma quanto no que tange ao próprio processo de votação, sempre tão problemático naquele país. Antes da chegada do novo coronavírus, o presidente Trump comemorava o sucesso da recuperação da economia, com uma taxa de desemprego de cerca de 3.5%. Hoje, a economia norte-americana apresenta uma queda de um terço do PIB desde o início do ano, cerca de um quarto da mão de obra de trabalho teve que buscar ajuda no seguro-desemprego, e a taxa de desemprego se encontra ao redor de 9 por cento. Números que em condições normais certamente dariam a vitória ao candidato da oposição, mas os EUA estão longe da normalidade.

A imprevisibilidade da disputa tenderá a permanecer dependendo do comportamento de quatro variáveis-chave: a crise econômica em curso, a dinâmica dos protestos anti-racismo, o voto latino, e a pandemia da Covid-19

Mesmo em meio a isso tudo, o Partido Democrata não tinha, pelo menos até agora, conseguido apresentar respostas convincentes aos segmentos sociais compostos por trabalhadores industrias desempregados, especialmente no chamado “cinturão da ferrugem” do meio-oeste do país. E enquanto Trump tem apostado na estratégia populista de repetir que os EUA são grandes novamente e culpar a China por qualquer problema econômico, os Democratas vêm buscando atender às demandas progressistas com propostas tímidas para economia, como reajuste no salário mínimo de US$ 7,25 para US$ 15 e projetos muito genéricos para refinanciar dívidas estudantis e reformular a matriz industrial estadunidense, privilegiando a energia limpa.

Por sua vez, a violência policial contra os negros nos EUA é um problema estrutural que remonta à construção do capitalismo sobre a escravidão naquele país. A resistência dos negros contra a opressão das forças de segurança em função de um sistema majoritariamente controlado por brancos nunca cessou, como bem demonstra a trajetória do movimento de direitos civis dos anos 1960. O capítulo mais recente desse embate entre tentativas de opressão e resistência é o movimento Black Lives Matter (BLM), que mobilizou outros movimentos e cidadãos contra a crescente violência policial contra negros na última década. Mais uma vez, os dois partidos oferecem respostas insuficiente para o problema.

Nesse novo e tumultuado contexto, onde manifestantes ocuparam as ruas da maioria das cidades dos EUA, Trump vem buscando criar uma sensação de medo entre setores moderados da sociedade, que tendem a decidir as eleições presidenciais nos EUA, especialmente os de etnia branca que residem nos subúrbios de classe médias das grande cidades. De maneira efetiva, em comerciais da campanha para a reeleição, Trump tem acusado Biden de querer destruir os subúrbios de classe média ao querer forçar uma maior miscigenação via a criação de moradias coletivas e interraciais nesses bairros. Da mesma forma, Trump enviou tropas civis federais a diversas cidades do país, sob o pretexto de impedir que os protestos ainda em curso ocorram de maneira violenta, iniciativa essa que, de forma irônica, mas certamente planejada, acirrou os ânimos e ampliou o nível de violência.

Trump vem buscando criar uma sensação de medo entre setores moderados da sociedade, que tendem a decidir as eleições presidenciais nos EUA, especialmente os de etnia branca que residem nos subúrbios de classe médias das grande cidades

Pela primeira vez, os latinos superaram os negros como principal força eleitoral entre os grupos étnicos e raciais. Como no caso dos negros, a opressão sobre os latinos nos EUA é um problema estrutural. Imigrantes latinos e seus descendentes nos EUA têm em geral sido fiéis ao Partido Democrata, mas o governo Obama tratou do tema da imigração e os imigrantes latinos com ampliação da perseguição e deportação além de medidas que acabam retroalimentando a imigração como planos econômicos calcados no receituário neoliberal. O Partido Republicano e, sobretudo, Trump continuam a adotar uma abordagem truculenta, prometendo intensificar a lei e a ordem e literalmente construir um muro para separar os EUA da América Latina. Com isso, o comparecimento dos latinos às urnas tem sido fraco. Nas últimas eleições, apenas 49% estiveram dispostos a votar. Desses, 30% votaram em Trump, mesmo com a truculência. Agora, em 2020, 13.3% dos eleitores serão latinos. Desses, 60% diz estar disposto a votar. Muitos são jovens que votarão pela primeira vez e que podem ser decisivos em estados onde a corrida eleitoral está apertada, como Texas, Arizona e Flórida.

Em um país em que o voto é facultativo e as eleições ocorrem em dia útil, as determinações das agências de saúde para evitar aglomeração em virtude do Covid-19 e o próprio receio de contrair a doença ao sair de casa criam enormes desincentivos ao comparecimento eleitoral. Os eleitores de Trump, que frequentemente nega os efeitos nocivos da pandemia, podem estar mais propensos a se arriscar nas seções eleitorais. Por sua vez, eleitores de Biden, que reconhecem o perigo do vírus, estariam menos propensos a ir às urnas. Para tentar recriar as condições de participação democrática, a maioria dos estados ampliou as regras para a votação via correios, ainda que isso não tenha resultado em um sistema uniforme em escala nacional e muitas restrições permaneçam. Além disso, o governo Trump, quem vem questionando a lisura e eficiência do voto por meio postal, tem sucateado a agência estatal de correios, criando enormes e desnecessárias dificuldades para um bom encaminhamento de uma eleição onde se espera que mais da metade dos eleitores venha a votar pela via postal, com impacto negativo sopresado junto às minorias étnicas.

Existe mesmo a preocupação crescente entre analistas que Trump não venha a aceitar uma eventual derrota, criando uma crise institucional sem precedente na era moderna

Além disso, é inevitável que o voto pelo correio venha a atrasar o resultado da eleição, mostrando resultados parciais iniciais que traduziriam majoritariamente os votos presenciais, portanto em prol do republicano. Esse cenário, perigosamente, dá margem para que Trump e seus seguidores possam a questionar o própria validade e legitimidade da eleição como um todo, na medida em que votos via correio forem sendo contados e, presume-se, venham a dar vantagens aos Democratas. Existe mesmo a preocupação crescente entre analistas que Trump não venha a aceitar uma eventual derrota, criando uma crise institucional sem precedente na era moderna.

O que parece certo é que as eleições presidenciais de 2020 nos Estados Unidos ocorrerão em meio a uma enorme polarização ideológica e forte turbulência social, com alto risco de protestos ao longo e, talvez mesmo, e especialmente, após a conclusão do pleito. Assim, ainda que pareça definida, do ponto de vista de sondagens eleitorais, a disputa presidencial nos EUA encontra-se, de fato, em meio a um alto grau de imprevisibilidade e indefinição.

* Rafael R. Ioris é professor da Universidade de Denver

** Roberto Moll é professor da Universidade Federal Fluminense

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