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Arma de guerra

Paramilitares sudaneses usam o estupro como método de limpeza étnica, denuncia a ONU

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Fuga. Mulheres e crianças seguem para campos de refugiado, em uma jornada perigosa, frequentemente mortal – Imagem: Frederic Noy/UNHCR/ONU
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Militantes que estupraram e atacaram grupos minoritários em ­Darfur ameaçaram forçar as mulheres a ter “bebês árabes” e usaram insultos étnicos durante seus ataques, de acordo com um novo relatório das Nações Unidas. Os detalhes do último levantamento da missão de investigação da ONU são acompanhados por denúncias de ativistas de que os paramilitares das Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) têm tentado cometer genocídio de grupos étnicos não árabes em Darfur, no oeste do Sudão, nordeste da África. O relatório responsabilizou combatentes das RSF por violência sexual em todo o país, onde lutam contra o exército pelo controle desde abril de 2023, com vítimas entre 8 e 75 anos.

Em Darfur, e particularmente entre o grupo étnico masalit, as vítimas disseram que a violência teve um motivo claramente racial. A missão de investigação cita masalits vítimas de estupro que ouviram os combatentes declararem sua intenção de que “neste ano, todas as meninas devem engravidar dos Janjaweed”. Segundo outra mulher, em El Geneina, seu agressor lhe disse: “Faremos com que vocês, meninas masalits, tenham filhos árabes”.

A cidade de El Geneina, no estado de Darfur Ocidental, com população predominantemente masalit, foi foco de intensos combates e um longo cerco por homens das RSF, que tomaram o controle da cidade em junho de 2023. Integrantes da força de apoio, descreve o relatório, foram de porta em porta nos bairros habitados por masalits à procura de homens para matar. As mulheres foram agredidas, estupradas e submetidas a outras formas de violência, e com frequência instadas a deixar o Sudão e irem para o vizinho Chade.

Caroline Buisman, coordenadora da missão de investigação no Sudão, disse que os investigadores identificaram que as RSF e as milícias aliadas cometeram crimes de guerra contra o povo ­masalit, entre eles violência sexual, tortura, ataques a civis e deslocamento forçado. “Descobrimos que estupros e outras formas de violência sexual cometidas pelas RSF e milícias aliadas faziam parte de ataques em larga escala, em particular contra a comunidade masalit, com base em sua etnia.”

Formalizada como grupo paramilitar a partir de milícias conhecidas como Janjaweed, as RSF e seu líder, ­Mohamed Hamdan Dagalo, ganharam destaque após protestos populares que acabaram com a ditadura de três décadas de Omar al-Bashir, em 2019. Com uma base de poder à margem da sociedade sudanesa em Darfur, Dagalo conseguiu instalar-se no centro dos eventos na capital, Cartum, como vice-líder do governo de transição, atuando, ao lado do chefe do exército, Abdel ­Fattah al-Burhan, para marginalizar os civis. Mas os dois começaram a disputar o controle no ano passado.

As mulheres masalit são o principal alvo

Nos 18 meses desde o início dos combates, as RSF e o exército sudanês travaram duras batalhas pelo poder em todo o país. O conflito obrigou cerca de 14 milhões de habitantes a se deslocarem, enquanto ao menos 19 mil foram mortos, calcula a ONU. Os paramilitares tomaram quase a totalidade de Darfur e se infiltraram em Cartum, forçando o governo a se deslocar para Port Sudan. Os serviços públicos ruíram, hospitais foram atacados e a falta de acesso humanitário dificultou a entrega de alimentos e remédios nas áreas afetadas.

Um relatório de maio da Human ­Rights Watch também encontrou evidências de violência sexual motivada por raça, a começar pelo fato de muitos combatentes usarem insultos étnicos, chamar as mulheres atacadas de escravas e dizer que estuprariam as masalits até elas terem bebês árabes. O relatório citou ainda o caso de combatentes que partiram depois de descobrirem que uma garota de 15 anos estuprada era de uma família árabe proeminente.

As RSF e as milícias Janjaweed, relatam ativistas dos direitos humanos, têm um longo histórico de uso de violência sexual, que remonta a diversos ataques a não árabes no início dos anos 2000. Esse período violento está sob investigação de genocídio pelo Tribunal Penal Internacional. De acordo com Hala ­Al-Karib, diretora regional do grupo de direitos das mulheres Strategic Initiative for Women in the Horn of Africa (Iniciativa Estratégica para Mulheres no Chifre da África), as condições em Darfur pioraram desde o fim das operações de paz da ONU na região, em 2020, fortalecendo as milícias árabes e seus ­líderes. “As RSF usaram violência ­sexual como ferramenta para limpeza étnica e, definitivamente, há marcas de genocídio, em particular em Darfur ocidental. Acho que ainda não conhecemos totalmente a escala do que aconteceu lá”, disse ­Karib. “As RSF têm usado de forma muito estrutural o estupro coletivo e outras formas de violência e escravidão sexual como ferramentas para apropriação de terras, despejos forçados e para destruir comunidades e matar qualquer possibilidade de resistência à dominação máxima que buscam na região.”

Marwa Gibril, médica e ativista em Darfur, afirma que as RSF usam violência sexual em todo o Sudão para destruir comunidades, mas com um foco étnico específico em Darfur. As tribos recrutadas pelos paramilitares, afirma, acreditam em sua supremacia sobre as outras por causa de sua herança árabe. “Para manter sua superioridade, eles invadem essas áreas e matam os homens, para modificar o pool genético por meio do estupro de mulheres e da geração de bebês árabes, e não masalits, fur ou de outra etnia negra”, descreve Gibril. •


Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Publicado na edição n° 1336 de CartaCapital, em 13 de novembro de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Arma de guerra’

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