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Argentina será a porta-voz dos excluídos Cuba, Venezuela e Nicarágua na Cúpula das Américas

México e Bolívia irão boicotar o evento em solidariedade com os aliados. A cisão revela a perda de influência dos Estados Unidos na América Latina

Presidente argentino Alberto Fernández (ESTEBAN COLLAZO / PRESIDENCIA / AFP)
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O presidente argentino, Alberto Fernández, tem a missão dada pela esquerda latino-americana de representar de forma crítica os países excluídos pelo governo de Joe Biden na IX Cúpula das Américas, que começa nesta segunda-feira (6), em Los Angeles.

A decisão de Joe Biden de não convidar Cuba, Venezuela e Nicarágua para a Cúpula das Américas, por considerar que esses países não são democráticos, provocou uma reação dos aliados de esquerda na região. Vários líderes latino-americanos designaram Fernández para levar uma crítica pública aos Estados Unidos durante a reunião.

Quando o dirigente argentino chegar a Los Angeles no dia 8 para participar da primeira Cúpula das Américas realizada nos Estados Unidos, o discurso contra a exclusão deve ecoar pelos salões do evento. No entanto, alguns observadores consideram a missão assumida por Fernández inadequada.

“Esse será um claríssimo e triste erro da nossa política externa. A Argentina não pode defender, em nome de uma suposta inclusão de todos os países do continente, três ditaduras terríveis”, explica à RFI Jorge Faurie, ex-ministro das Relações Exteriores da Argentina (2017-2019). “É como se, no final dos anos 80, a Argentina defendesse Augusto Pinochet”, compara Faurie, em referência ao ditador chileno (1973-1990).

Fernández deverá tentar um difícil equilíbrio entre defender a participação dos regimes autoritários de Cuba, Venezuela e Nicarágua na cúpula, sem comprometer os interesses que pretende defender em uma reunião bilateral prevista com Biden, na Casa Branca, no dia 25 de julho.

“Temos de esperar para ver qual será o discurso de Alberto Fernández, porque as suas posições são sempre sinuosas, contraditórias e ambíguas”, indica à RFI o cientista político argentino Sergio Berensztein. No entanto, diz o analista, “se Fernández fizer uma defesa de confronto, será controverso, ainda mais quando obteve uma reunião com Biden”, assinala Berensztein.

Os países que decidiram não participar da Cúpula das Américas em solidariedade com os aliados excluídos são México, Bolívia, Honduras, Guatemala e 15 nações caribenhas, dependentes do petróleo venezuelano.

Jogo de interesses

O presidente argentino deverá não apenas criticar a exclusão de Cuba, Venezuela e Nicarágua, mas também atacar os embargos econômicos dos Estados Unidos impostos a Havana e Caracas, sobretudo durante a pandemia de Covid-19 e a guerra na Ucrânia.

Na semana passada, durante a reunião regional de ministros da Educação da América Latina e do Caribe em Buenos Aires, Fernández deu indícios da narrativa que pretende adotar, baseada no argumento de que “a guerra no Norte traz miséria ao Sul”.

“Por mais quanto tempo seremos cúmplices de um mundo no qual o Sul não faz parte, apenas olha? Eu não me calarei mais. E o que eu digo aqui, direi também no Norte. E seria maravilhoso que os países que hoje sofrem se somem à minha voz”, disse o presidente argentino.

“Temos um país que está bloqueado economicamente há seis décadas e que sobrevive como pode”, evocou Fernández. “E temos outro bloqueado há cinco anos, e que ficou bloqueado em plena pandemia do coronavírus, quando a solidariedade era mais necessária do que nunca”, salientou. “Deveríamos ter vergonha de que isso aconteça no nosso continente”, concluiu o líder argentino em referência aos embargos aplicados contra Cuba e Venezuela.

Fernández preside a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac), um organismo criado em 2010, a partir da iniciativa do então presidente venezuelano Hugo Chávez, sob o argumento de que a Organização dos Estados Americanos (OEA) é uma instância que responde aos interesses dos Estados Unidos.

Em janeiro de 2020, alinhado aos interesses de Washington, o governo de Jair Bolsonaro decidiu suspender a participação do Brasil na Celac. O Itamaraty justificou a decisão pela “falta de resultados na defesa da democracia” e alegou que a comunidade “tornou-se um palco para regimes não democráticos como os de Venezuela, Cuba e Nicarágua”, nas palavras do então chanceler Ernesto Araújo.

A Argentina chegou a propor a realização, também em Los Angeles, de uma reunião paralela da Celac na qual participassem ministros de Cuba, Venezuela e Nicarágua, mas a proposta não vingou.

Esquerda anti-imperialista

A decisão de fazer da Argentina a porta-voz dos excluídos regimes de Cuba, Venezuela e Nicarágua foi costurada com o presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, e teve a aprovação do venezuelano Nicolás Maduro.

“Existe um acordo para acompanhar a denúncia da Argentina contra as exclusões, uma política retrógrada, quando precisamos de irmandade entre todos os países, não de divisão nem de confrontação”, declarou López Obrador. Segundo o presidente mexicano, “Fernández levará a mensagem de que somos todos americanos e que não aceitamos que nenhum país da América seja excluído”. “Não aceitamos que violem a nossa independência nem a soberania dos nossos povos”, ressaltou López Obrador.

“Quero agradecer as declarações corajosas de Alberto Fernández. Sabemos que a sua voz firme, clara e valente será uma das vozes mais poderosas para questionar a exclusão e a tentativa de divisão da América Latina e do Caribe com esta política errática do governo dos Estados Unidos”, disse Maduro, na semana passada.

No dia 3 de fevereiro, em plena tensão entre Washington e Moscou, e quando as tropas russas já estavam na fronteira com a Ucrânia, Fernández visitou Vladimir Putin no Kremlin. Durante a reunião, o argentino disse que “estava determinado a fazer com que a Argentina deixe a dependência tão grande que tem dos Estados Unidos”. Na ocasião, ele ainda ofereceu a Argentina a Putin como “a porta de entrada da Rússia na América Latina”.

“O dano que Fernández fez à relação bilateral da Argentina com os Estados Unidos é enorme. Agora, enquanto fazia essa encenação se iria ou não à cúpula, dizendo que faria uma reunião paralela com os países excluídos, o governo argentino pressionou, ao mesmo tempo, por uma audiência com Biden”, recorda o ex-chanceler Jorge Faurie. “Nem Sigmund Freud poderia entender o posicionamento externo da Argentina”, critica.

Participação em troca de bilaterais

Nos últimos dias, os Estados Unidos tentaram convencer os presidentes das três maiores economias da região a participarem da reunião. O esvaziamento da Cúpula das Américas seria um duro revés diplomático para a Casa Branca.

Na semana passada, Washington enviou o ex-senador democrata Christopher Dodd, assessor especial do governo Biden, aos principais países da região. O México manteve a postura de não participar, porque a sua Constituição impede que um presidente mexicano exerça ingerência nos assuntos internos de outro. Em Los Angeles, o presidente López Obrador pretendia criticar os Estados Unidos.

Brasil e Argentina mudaram de posição. A moeda de troca foi uma reunião bilateral com Biden. Bolsonaro terá seu primeiro encontro com o presidente americano durante a cúpula, na próxima semana, enquanto Fernández obteve uma data em julho.

Perda de influência

Esta edição da Cúpula das Américas pretendia aproximar os Estados Unidos da América Latina, mas revelou um muro bem mais alto do que se imaginava. Nos últimos 20 anos, desde o ataque das Torres Gêmeas, em 2001, Washington teve outras prioridades, em outras regiões do mundo, cedendo espaço à Rússia e, sobretudo, à China.

“As prioridades dos Estados Unidos não passam pela América Latina. A sua maior preocupação agora é conter a presença desafiante da China na nossa região”, observa o ex-chanceler Jorge Faurie.

“A América Latina nunca foi central, mas perdeu importância relativa a partir do ataque às Torres Gêmeas. Toda a preocupação dos EUA passou a ser com o Oriente Médio e com o terrorismo. Depois, com a consolidação da China como potência. O vácuo que os Estados Unidos deixaram foi em parte pela China, em parte pela Rússia. Há uma perda de influência que se manifesta em múltiplas dimensões”, concorda o analista Sergio Berensztein.

Na avaliação do especialista, “a região, em geral, ficou marginalizada”. “Agora, como consequência da guerra na Ucrânia, há uma valorização com objetivos em torno do petróleo, que não deve ser entendida em termos ideológicos, mas sim pragmáticos”, conclui Berensztein.

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