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Argentina: peronistas preocupam-se em como administrar herança de Macri

Os argentinos serão obrigados a atravessar mais um mês no limbo à espera de dias melhores

Cristina Kirchner e Alberto Fernández. Foto: Juan Mabromata/AFP Kirchner e Fernández: muito trabalho pela frente. Foto: Juan Mabromata/AFP
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Às vésperas da eleição presidencial do domingo 27, uma grande dúvida preenchia as cabeças dos 45 milhões de argentinos, principalmente dos 33 milhões de eleitores: qual será a distância entre a candidatura de Alberto Fernández e da vice Cristina Kirchner e a do atual presidente Mauricio Macri? A expectativa era de uma vitória esmagadora dos primeiros. Só não se sabia o tamanho. Outra expectativa, ainda maior: quais serão as primeiras medidas anunciadas por Fernández para enfrentar a pior crise vivida pela Argentina desde o derretimento da economia em 2001, quando o país teve cinco presidentes em pouco mais de uma semana?

Na quarta-feira 23, o peronista declarou esperar que na segunda-feira 28, quando os resultados das urnas tiverem sido oficializados, impere um clima de tranquilidade no mercado financeiro. E ao falar em tranquilidade, mandou uma mensagem aos argentinos, assegurando que, quando assumir, em 10 de dezembro, irá cuidar das poupanças e dos depósitos em dólar, legalizados no país. 

As previsões que circulam tanto no mercado quanto nas ruas indicam, porém, o contrário, principalmente em relação ao câmbio. Desde o resultado das prévias obrigatórias, realizadas em agosto, e que surpreendeu a todos pela distância entre Fernández e Macri, o dólar escalou de 48 para 60 pesos. Para impedir que a moeda local derretesse de vez, a solução encontrada pelo atual governo foi inundar o mercado de moeda norte-americana retirada das minguadas reservas cambiais. Ainda assim, a três dias do esperado massacre eleitoral, três tipos de câmbio vigoravam. O oficial era cotado a 61,25 pesos por dólar. No câmbio negro, passava um pouco de 67. O que chamava a atenção, porém, era o valor de um engenho singular desta nação singular, o dólar banco, que basicamente consiste em uma operação triangular: o interessado compra ativos financeiros em pesos e vende imediatamente em dólares, que são depositados em contas no exterior. Nessa estranha modalidade, um dólar valia, ao meio dia da quarta 23, quase 80 pesos. Para ser exato, 79,70. Enquanto isso, no mercado futuro, a moeda dos EUA, com vencimento para o fim de dezembro, era cotada a 81,41 pesos. 

Macri prometia o paraíso. Entregou o calvário (Foto: Joaquin Salgueiro/AFP)

O câmbio é apenas um dos tantos reflexos da tensão vivida na Argentina. A crise econômica e social, a “herança maldita” do governo Macri, que impôs um neoliberalismo fundamentalista aos conterrâneos, é gravíssima. Fernández repetiu em seu discurso um diagnóstico que se ouve em qualquer canto: a situação é tão catastrófica que só não aconteceu uma convulsão social como aquelas ocorridas no Equador e no Chile porque havia a expectativa de uma eleição presidencial que poderá abrir caminho a uma mudança radical no panorama caótico.

A pobreza e a miséria atingiram níveis recordes na história do país

Quando assumiu a Presidência argentina em dezembro de 2015, Macri anunciou um futuro róseo muito semelhante ao prometido no Brasil pelo ministro da Economia, Paulo Guedes: combate ao déficit fiscal, retomada rápida do crescimento, queda da inflação e fim da pobreza. Quatro anos depois, o saldo é exatamente o oposto. A inflação ronda a casa dos 57% anuais (em setembro, bateu em 6%), o PIB encolheu 2,5% no ano passado e as previsões indicam que deverá encolher outros 3% em 2019. A pobreza e a desigualdade dispararam e atingiram um nível recorde. O PIB per capita até julho havia encolhido em mais de 14%, segundo os dados oficiais. 

O empobrecimento dos argentinos é facilmente constatado. O consumo familiar registrou, neste outubro, seu vigésimo primeiro mês contínuo de redução, o que não acontecia desde 2001. No segundo semestre do ano passado, 32% da população vivia abaixo da linha de pobreza. No fim do primeiro semestre de 2019, o porcentual havia subido para 36%, ou 1,5 milhão de argentinos a mais. Atualmente, cerca de 16 milhões de cidadãos são considerados pobres, o equivalente a um Portugal e meio. Os miseráveis passaram de 7% para 8% da população, ou 3,6 milhões, contingente maior do que a população do vizinho Uruguai.

Moradores da Argentina entregues à própria sorte

Desde o primeiro dia de mandato, Macri seguiu à risca o receituário neoliberal. Cortou os subsídios aos serviços públicos e liberou os preços do gás, do transporte, da água e da energia. O choque nas tarifas elevou a inflação, corroeu os salários e gerou desemprego. A queda na cotação internacional das commodities como carne e soja derrubou as receitas públicas e os ganhos dos produtores. Sem uma reserva cambial protetora como as do Brasil, que tem em caixa 380 bilhões de dólares, acumulados durante os governos do PT, e com boa parte da dívida estatal em mãos de estrangeiros, a Argentina tornou-se uma presa fácil dos abutres do mercado financeiro global. A crise fiscal levou a uma crise da dívida e sepultou as chances de qualquer recuperação econômica. Ao longo de quatro anos, o número de empresas e comércios que fecharam as portas não parou de crescer. Só entre junho do ano passado e setembro último, ao menos cinco mil fábricas, dos mais variados tamanhos, foram à falência. Um claro retrato da desindustrialização esculpida por Macri está em Córdoba, maior polo produtor de veículos do país. Lá, as empresas trabalham neste momento com apenas 30% da capacidade instalada. 

Há, enfim, uma população profundamente endividada a viver em um país que acumulou durante o período de Macri uma dívida impagável. O empréstimo do Fundo Monetário Internacional, de 57 bilhões de dólares, o maior da história argentina, nem sequer fez cócegas na situação. Um dos motivos é o fato de o FMI liberar o dinheiro a conta-gotas, apesar de exigir que suas determinações, disfarçadas de conselhos, sejam implementadas de uma só tacada. O cenário eleitoral, ou melhor, a vitória certa de Fernández, levou o Fundo a interromper o repasse de uma parcela de 5,4 bilhões prevista para setembro. De qualquer maneira, metade do financiamento entrou nas contas do governo, mas ninguém tem ideia se a Argentina será capaz de pagá-lo ou irá recorrer a um novo calote. Os peronistas pedem uma carência maior.

Desde a derrota contundente nas prévias, Macri tornou-se um fantasma de si mesmo

Para encerrar a desolação geral, o governo Macri acabou de fato logo depois do anúncio da contundente derrota nas prévias de agosto. Completamente desacreditado tanto no setor produtivo, incluído aí o poderoso agronegócio que continua a ser o motor da economia, quanto no mercado financeiro, o aliado de Bolsonaro transformou-se numa espécie de fantasma de si mesmo.

Há, claro, uma parcela significativa da sociedade argentina que continua a apoiá-lo, mas a adesão não é suficiente, indicam as pesquisas, para forçar um segundo turno, nem mesmo para impedir uma derrota humilhante no domingo. Os argentinos serão obrigados, no entanto, a atravessar mais um mês no limbo à espera de dias melhores.

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