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Argentina investiga Macri por contrabando de armas para a Bolívia contra Evo

‘A quantidade de provas é assombrosa’, afirma o ministro da Justiça, Martín Soria, ao comentar as acusações contra o ex-presidente

No apagar das luzes. Macri havia perdido as eleições para Fernández quando enviou o material para La Paz. FOTO: Aizar Raldes/AFP e Casa de América
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Desde o golpe de Estado que depôs Evo Morales na Bolívia, em novembro de 2019, a Argentina transformou-se numa espécie de palco alternativo para os acontecimentos políticos do país andino. O presidente exilado desembarcou em Buenos Aires no dia seguinte à posse de Alberto Fernández,­ permanecendo em solo portenho até que a democracia se restabelecesse em sua pátria. Agora surgem robustas evidências de que o ex-presidente argentino Mauricio Macri enviou munições para os militares bolivianos, exatamente no período em que Morales foi forçado a renunciar, como indica uma carta de agradecimento do chefe da Força Aérea da Bolívia.

Em decorrência disso, o governo ­Fernández denunciou penalmente, por crime de contrabando de armas, o ex-presidente Macri, seus ex-ministros da Defesa e Segurança, Oscar Aguad e Patricia Bullrich, o ex-chanceler Jorge Faurie e outros colaboradores do segundo escalão. De acordo com a atual titular da pasta de Segurança, Sabina Frederic, foram enviados ao menos 70 mil projéteis para apoiar a repressão política a La Paz, logo após o golpe.

[Atualização desta sexta-feira 16: Macri foi formalmente acusado pelo contrabando de armas. A decisão partiu do procurador Claudio Navas Rial, que também promoverá uma investigação criminal contra Bullrich, Aguad e outros colaboradores, de acordo com informações da imprensa argentina].

A crise na Bolívia começou quando Morales conquistou seu quarto mandato presidencial. A oposição acusou o governo de fraudar as urnas e contou com a prestigiosa colaboração de entidades internacionais, como a Organização dos Estados Americanos, sob a tutela de Luis Almagro, para deslegitimar o pleito. Após sofrer pressão dos militares, Morales renunciou em 10 de novembro daquele ano, abrindo as portas do Palacio Quemado para Jeanine Áñez, então chefe do Senado. O presidente deposto viu-se obrigado a fugir do país, instalando-se primeiramente no México, em uma operação de resgate internacional minuciosamente articulada por vários países da região, mas encabeçada pelo recém-eleito presidente argentino Alberto Fernández.

Foram enviados ao menos 70 mil projéteis para apoiar a repressão política, denuncia o governo de Alberto Fernández

“A quantidade de provas existentes é assombrosa”, afirma o atual ministro da Justiça, Martín Soria, ao comentar as acusações contra Macri por contrabando de armas. A denúncia formalizada na segunda-feira 12 surge de investigação levada a cabo na Bolívia, “depois que se encontrou uma nota na qual o ex-comandante-geral da Força Aérea Boliviana Jorge Gonzalo Terceros Lara agradece ao embaixador argentino em La Paz pelo envio de munições e armamento”, conta Soria. Terceros Lara foi detido no início de julho, acusado de participar da trama que levou à deposição de Morales.

A denúncia original partiu do ministro de Relações Exteriores da Bolívia, Rogelio Mayta. A CartaCapital, ele mostrou os itens que constam na nota de agradecimento: 40 mil cartuchos de “balas de borracha”, 18 sprays de gás lacrimogêneo MK-9, 5 bombas de gás lacrimogêneo MK-4, 50 granadas de gás CN, 19 granadas de gás CS e 52 granadas de gás HC pela Argentina. No entanto, segundo informações coletadas pela Polícia Federal local, as munições enviadas ao país andino em 2019 teriam sido “quase o dobro”.

Os 40 mil cartuchos enviados no dia 13 de novembro, de Buenos Aires para La Paz, tiveram como destino a Força Aérea e as Forças Policiais, diz Mayta. “Outros 30 mil cartuchos podem ter feito parte do arsenal utilizado nos massacres de Sacaba e Senkata”, especula. A repressão empreendida nessas cidades bolivianas pelas forças militares e policiais, logo após Jeanine Áñez assumir a Presidência, deixou o saldo de 36 mortos.

Por sua vez, o ministro da Justiça argentino declarou que a saída de todo esse armamento, bem como o deslocamento de efetivos da Polícia Federal, convocados sob a justificativa de resguardar o embaixador e sua família, sob ordens da então ministra Patricia Bullrich, “apresenta grande contradição”. A diferença está entre a quantidade de munição enviada com o número que consta como entregue à polícia e às Forças Armadas bolivianas. “Decidimos fazer a denúncia penal correspondente pelo delito de contrabando agravado.”

“Por ter participado com contrabando de armas em um processo de sedição, como o que se vivia na Bolívia, Macri pode ter de dar explicações aos tribunais internacionais”, acrescenta o embaixador argentino em La Paz, Ariel Basteiro.­

O diplomata informou que um comitê da Comissão Interamericana de Direitos Humanos está trabalhando na Bolívia neste momento, para “investigar as consequências e as responsabilidades no golpe”. Segundo ele, o grupo deve apresentar um relatório em agosto, no qual a “lamentável participação do governo Macri contra o governo de Evo Morales” deve ser incluída.

Do lado argentino, o ministro da Justiça diz que está “trabalhando em uma denúncia junto a diversos órgãos internacionais, porque eles (os integrantes do governo Macri) também violaram tratados e convenções”. Ao comentar as revelações em entrevista à rádio argentina El Destape, Morales reforçou a tese de articulação internacional para demovê-lo do cargo com envolvimento de ­Washington. “Estou convencido de que houve participação do embaixador dos EUA, antes e durante o golpe”, denunciou.

“Eu não sei se estavam tentando gerar instabilidade política na região. Na verdade, não podemos descartar nada, não seria a primeira vez que isso acontece”, comenta o ministro Soria, sobre a possível influência norte-americana na conspiração. Para ele, é chamativo que, nas datas de envio das armas, Macri havia perdido as eleições e faltavam poucas semanas para Fernández assumir a Presidência da Argentina.

(Foto: Ministério de Hidrocarburos de Bolívia)

“Estou convencido de que houve participação do embaixador dos EUA”, afirma Morales

Em carta pública, Macri, hoje o principal líder de oposição, afirma que o envio das munições tinha por objetivo garantir a segurança da embaixada argentina em meio ao caos em que vivia a Bolívia naquele momento. No texto, o ex-presidente afirma que seu governo prestou “ajuda humanitária” ao povo boliviano, após “as denúncias de fraude e consequente renúncia de Evo Morales e em consonância com a OEA e a União Europeia”.

A ex-ministra da Segurança Patrícia Bullrich, estrela dos ultradireitistas argentinos, também nega as acusações de contrabando. Conhecida por propostas do tipo linha-dura no enfrentamento à violência, ela chegou a comparar seu projeto de lei anticrime, em uma de suas numerosas aparições na televisão, à malfadada proposta desenvolvida pelo governo Bolsonaro. Questionada se imitava algumas das ideias do presidente brasileiro, ela alegou ser exatamente o oposto. “Li atentamente a lei anticrime formulada por Sergio Moro. Nessa lei estão todos os conceitos que levantamos na Argentina. Há flagrante delito, ou seja, julgamentos rápidos; legítima defesa para que não julguem mal a polícia; o endurecimento das penas para as organizações criminosas do narcotráfico…”, e prosseguiu enumerando outros tópicos.

No caso do envio de material bélico à Bolívia, Bullrich diz que “Macri cumpriu seu dever de proteger a embaixada da Argentina naquele país”, apesar de todas as ações estarem concentradas entre 11 e 12 de novembro, exatamente no momento em que Morales fugia e Áñez usurpava o seu cargo. Deve ser mera coincidência, claro… A América Latina está cheia delas.

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1166 DE CARTACAPITAL, EM 15 DE JULHO DE 2021.

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