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Argentina: Fernández exalta Lula e critica perda de direitos dos trabalhadores

Presidente eleito inicia transição cordial com Maurício Macri e colocará em prática programa inspirado no Fome Zero

Cristina Kirchner e Alberto Fernández. Foto: Juan Mabromata/AFP Kirchner e Fernández: muito trabalho pela frente. Foto: Juan Mabromata/AFP
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“Esta não é a Frente de nós, é a Frente de Todos e nasceu para incluir todos os argentinos”, foram algumas de primeiras palavras de Alberto Fernández como presidente eleito da Argentina em discurso frente aos convidados da festa que acontecia em seu comitê eleitoral no bairro portenho de Chacarita. Na ruas, cerca de um milhão de pessoas ouviam atentas o discurso que encerrava uma longa espera pela contagem dos votos e também pelo retorno do Kirchnerismo, mais peronista do que nunca.

Apesar da vitória em primeiro turno, a vantagem de cerca de 15 pontos percentuais obtida nas Eleições Primárias no dia 11 agosto não foi mantida. O atual presidente, Maurício Macri, cresceu na preferência dos eleitores que podem ter feito uso do voto útil para tentar fazer frente ao favoritismo de Alberto Fernández. Com 97% das urnas apuradas, no momento do fechamento dessa matéria, Alberto Fernández contava com 48,1% dos votos e Maurício Macri com 40,4%.

Alberto Fernández viajou na manhã desta terça-feira 29 a Tucumán para participar da posse do governador Juan Manzur, e declarou ante o público que compareceu ao teatro da capital: “Esta sociedade não pode sentir-se digna se em seu seio há pessoas passando fome. Vamos arregaçar as mangas para que ninguém mais na Argentina passe fome. Isso não será uma conquista do governo, vai ser um sucesso de toda a Argentina”.

“Se algo nos diferencia na América Latina é que sempre garantimos o direito aos que trabalham, o direito a ter educação e saúde pública”. E aproveitou para alfinetar o atual governo: “De repente, não sei o que aconteceu. Mas há quatro anos se insiste que, para que a Argentina progrida, é preciso retirar direitos. Não conheço nenhuma sociedade que tenha se fortalecido perdendo direitos. Não conheço uma Argentina que progrida se privam aqueles que trabalham de ter direitos”, disse o presidente recém eleito.

Diante da emergência alimentar denunciada por organizações sociais em protestos no início do mês de outubro, Alberto Fernández apresentou, no último dia 7, o plano “Argentina Contra a Fome”, que visa acabar com o deficiência alimentar que atinge mais de 15 milhões de pessoas pobres, de acordo com dados do Observatório de Dívida Social da Universidade Católica da Argentina (UCA).

Inspirada no programa Fome Zero, implementado no início do primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2003, pretende organizar um conselho que trabalhe junto ao poder executivo para dar seguimento ao plano contra a fome. Além da criação de um cartão de alimentação para que a população de baixa renda tenha acesso aos produtos da cesta básica subsidiados pelo governo ou com descontos nos próprios estabelecimentos, aprovação de uma lei para que nenhuma empresa tenha mais de 30% de seus produtos nas gôndolas, evitando monopólios. Por último, o programa estabelece uma política nutricional para avaliar a qualidade dos alimentos consumidos pelas crianças.

“Expressamos a vontade de que tudo seja tranquilo”

Em sua primeira manhã como presidente eleito, Alberto Fernández visitou a Casa Rosada para um café da manhã a convite de Maurício Macri. Ambos selaram o encontro com uma foto e, em declaração dada na manhã desta terça-feira a meios locais , Alberto disse: “(Foi) uma reunião cordial. Ambos expressamos a vontade de que tudo seja tranquilo, que é o que os argentinos necessitam”.

Tudo muito diferente do que aconteceu em 2015, quando Cristina Fernández de Kirchner não compareceu à cerimônia de transferência da faixa presidencial e o contato entre ela e Macri foi mínimo.

O presidente eleito da Argentina, Alberto Fernandez, discursa ao lado de sua vice-presidente eleita Cristina Fernandez na sede do partido em Buenos Aires em 27 de outubro de 2019. Foto: ALEJANDRO PAGNI / AFP

Segundo o analista político Júlio Burdman, existe um duplo interesse do peronismo: “Coordenar com o Macri e, ao mesmo tempo, deixar claro que ele tem a culpa dos problemas do país”. Algo necessário diante do crescimento de Macri nas urnas, “o resultado é uma política mais equilibrada. Porque, agora, paira a ideia de que Macri poderia voltar em 2023, caso Alberto Fernández não faça uma boa presidência”.

Após a derrota, o controle cambial

Antes do café cordial, veio o anúncio de controle cambial no país. “Em vez de aceitar sua estrondosa derrota, Macri preferiu lutar. No entanto, sua luta custou caro. O controle cambial aplicado no último dia 28 deveria ter sido executado muito antes”, diz Burdman sobre a medida de controle da compra de dólares anunciada pelo Banco Central ainda na madrugada da segunda-feira.

“Endurecer o controle cambial era imprescindível para avançar sem que a Argentina passasse por outra sacudida financeira. A perda de reservas que ocorreu até o domingo, de 23 bilhões de dólares, é um custo altíssimo para atravessar um período de tão pouco tempo em um país que tem tanta necessidade de contar com dólares para se manter”, explica o economista Tomás Lukin.

A demora na tomada de uma ação por parte do governo para frear a saída de reservas do país foi, em grande parte, uma tentativa de evitar o descontentamento do eleitor frente a uma política econômica nada simpática. Reconhecida a derrota por Macri, no entanto, já não era necessário esperar para agir diante do estado emergencial pelo qual passa a economia.

A decisão de limitar a compra de dólares a cotas de U$100 mensais para pessoa física e U$200 para pessoa jurídica pode, até mesmo, ajudar na transição do poder.

“Acredito que, em geral, os peronistas têm uma visão mais nacional e menos global da economia. E isso inclui a ideia de controlar o dólar. Nos anos 90, por exemplo, com Menem instaurou o regime de convertibilidade que fixava, por lei, que o valor do peso deveria ser equivalente ao valor do dólar (1 peso = 1 dólar). Durante o Kirchnerismo, usou-se a ferramenta de intervenção do Banco Central para evitar flutuações – chamado dólar oficial. Isso significa que em ambas experiências peronistas a ideia da livre flutuação foi discutida”, opina Burdman.

Relação com o Brasil

O dia 27 de outubro marcou o aniversário de 9 anos de falecimento do ex-presidente argentino Néstor Kirchner, fato que foi rememorado por Alberto em declaração feita à imprensa local na manhã de domingo. “Este dia significa muito para mim, pela lembrança da morte de Néstor. O amo muito”, disse.

Outra data lembrada por Alberto foi o aniversário do ex-presidente Lula. Nas redes sociais publicou uma mensagem dando os parabéns ao brasileiro: “Hoje também faz aniversário meu amigo Lula, um homem extraordinário que está injustamente preso há um ano e meio. Parabéns pra você (está última frase escrita em português), querido Lula. Espero vê-lo logo. Completando a mensagem com o hashtag #LulaLivre.

Além disso, alguns membros do Partido dos Trabalhadores estiveram em Buenos Aires para acompanhar o pleito, inclusive organizaram uma manifestação para marcar o aniversário de Lula, chamada de Lula Day, na qual levaram bandeiras do partido em pequeno ato realizado em frente ao Obelisco.

“Nós tivemos uma agenda esses dias todos com as lideranças, os prováveis futuros ministros, coordenação da campanha. Fizemos visitas como observadores convidados por ele para acompanhar a eleição e agora vamos ficar até a conclusão da votação no comitê eleitoral dele”, contou para CartaCapital Aloizio Mercadante presente em Buenos Aires.

A reação do atual presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, foi imediata. Diante da manifestação de Alberto, declarou que não o reconheceria como presidente e completou dizendo que “a Argentina tomou uma má decisão”.

Retorno das esquerdas latino-americanas?

As revoltas ocorridas primeiramente no Equador, onde a Confederação Nacional Indígena convulsionou o país em protesto contra a retirada do subsídio do valor cobrado pelos combustíveis no país, e o estado de emergência que atravessa o Chile frente às revoltas iniciadas pelo aumento da passagem do metrô, puseram em xeque os governos com tendências liberais na região.

Diante desse panorama, a vitória do Kirchnerismo na Argentina é mais um sinal da retomada de força de governos de esquerda. “Acho que o vento que está soprando é um vento de mudança. É o total fracasso desse projeto neoliberal, desse arrocho fiscal, dessa irresponsabilidade com a maioria do povo, com uma sociedade cada vez mais desigual, acumulando riqueza e pobreza, miséria, desemprego e instabilidade para maioria do povo”, declarou esperançoso Mercadante sobre a eleição de Fernández.

E concluiu: “O caminho é o legado dos governos populares da América Latina e um modelo de crescimento com democracia, com estabilidade, mas com distribuição de renda, com inclusão social, com políticas públicas mais generosas para amenizar essa imensa desigualdade”.

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