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Argentina: Alberto Fernández nomeia “superministro” para contornar crise e salvar governo

Começa agora uma nova fase do governo argentino, inédita na história do país, em que um presidente, na prática, divide o poder com um “superministro”, criando um sistema semelhante ao parlamentarismo. A manobra, que visa garantir a governabilidade, tem final incerto

Foto: Marcos Brindicci/AFP
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O presidente argentino, Alberto Fernández anunciou uma reestruturação ministerial para tentar reverter a crise política do país, que gerou uma profunda falta de confiança da sociedade e dos mercados na capacidade de o governo gerir a grave crise econômica.

Com a reconfiguração, o presidente Alberto Fernández cede o controle das principais áreas do governo ao atual presidente da Câmara de Deputados, Sergio Massa, que se tornará um “superministro” da Economia. A mudança, no entanto, não elimina a tensão no interior da coalizão de governo, diante da frágil governabilidade.

“As mudanças no governo não eliminam a principal incerteza sobre o funcionamento interno da coalizão governista, formada por atores com visões muito diferentes. O principal conflito continua aberto: a vice-presidente, Cristina Kirchner está disposta a apoiar o acordo com o FMI? Essa desconfiança gerou a falta de credibilidade dos mercados em relação ao rumo da economia”, explica à RFI o analista político, Lucas Romero, diretor da consultora Synopsis.

“Enquanto Cristina Kirchner não expressar um compromisso com este acordo, será difícil que este governo, mesmo com estas mudanças, possa gerar confiança”, disse Romero.

Presidente decorativo

Se antes a coalizão de governo tinha três representantes principais (a sócia majoritária e vice-presidente, Cristina Kirchner, o presidente, Alberto Fernández, e o sócio minoritário, Sergio Massa), agora a coalizão fica com um no comando, com uma nos bastidores e um sócio decorativo, num sistema “hiper presidencialista” como o argentino.

“Esta é uma situação inédita na qual o presidente não tem poder próprio. Tem um poder emprestado pela vice-presidente. E, precisamente porque é uma situação inédita, a mudança ministerial é mais parecida à de um sistema parlamentarista do que a de um sistema presidencialista. É uma incógnita como isto vai funcionar. O final é incerto”, avalia o analista político, Carlos Fara.

Embora não seja um economista, Sergio Massa, será um “super ministro da Economia” de um Ministério que passa a absorver as pastas da Agricultura e da Produção, além de ficar como o responsável pelas relações com os organismos multilaterais de crédito.

Três ministros (Agricultura, Produção e Assuntos Estratégicos), inimigos políticos de Massa, não aceitaram as mudanças e renunciaram aos seus cargos. Um deles, Daniel Scioli, ministro da Produção, negociou retornar ao posto de embaixador no Brasil, de onde tinha saído apenas um mês e meio atrás.

A mudança que mais afeta a imagem do país aconteceu no próprio Ministério da Economia. A ministra Silvina Batakis durou apenas 24 dias no cargo. Foi demitida assim que chegou de Washington, depois de se reunir com investidores e com as autoridades do Fundo Monetário Internacional às quais garantiu que o governo cumpriria com as metas do acordo financeiro e que tinha todo o apoio político de Cristina Kirchner para esse objetivo.

A garantia da ministra tornou-se novamente incerta. “Não vamos encontrar um exemplo de maior improviso deste governo”, observa o analista Lucas Romero. Ainda desnorteada, Silvina Batakis aceitou ficar com a Presidência do banco estatal Nación.

Última chance

À medida que aceitava uma modificação, Alberto Fernández perdia o poder sobre as poucas áreas que ainda comandava. “Alberto Fernández é um presidente isolado, muito enfraquecido e sem legitimidade dentro da própria coalizão. Sergio Massa começa com muito poder, mas, se não der resultado, teremos uma nova crise política. Provavelmente, não veremos uma nova crise, mas uma nova fase, a fase final do governo”, adverte Carlos Fara.

A manobra para salvar o governo foi uma imposição de 13 governadores peronistas. Na quarta-feira (27), diante de um Alberto Fernández visivelmente desorientado com a crise, os governadores aliados exigiram medidas duras que revertessem a caótica situação. Durante a reunião, houve gritos, acusações e ultimatos. Alberto Fernández aceitou reestruturar o seu governo sob o risco de perder o último apoio que lhe resta e, com isso, a governabilidade do país.

Sem margem para errar

Se a imagem negativa do presidente chega a 71,6% enquanto a positiva não passa de 14,6%, a de Sergio Massa não fica muito atrás. Mesmo sem o desgaste de exercer o poder, Massa chega ao Executivo com 68,1% de imagem negativa e com apenas 9,1% de positiva, segundo a sondagem da consultora Giacobbe, divulgada nesta quinta-feira.

“Massa não tem boa imagem. Ele vai depender exclusivamente dos resultados. Massa tem uma rede de relações com empresários, com a oposição, com referentes nos Estados Unidos. Essa relação com o ‘establishment’ não resolve o problema, mas lhe dá uma margem de tempo para agir”, acredita Carlos Fara.

A Argentina convive com um elevado déficit fiscal que não pode ser financiado com mais impostos nem com contração de dívida. Sem acesso ao crédito e com a escassez de reservas no Banco Central, a saída tem sido a emissão monetária sem respaldo. O processo gera uma das maiores inflações do mundo, uma forte desvalorização da moeda e uma corrida cambial.

Uma diminuição do gasto público e um ajuste fiscal chocam com as posturas da vice-presidente Cristina Kirchner e dos movimentos sociais que ameaçam com protestos.A inflação de julho se projeta a superar 8%, elevando os cálculos de 2022 a uma taxa próxima de 100%. Pelo acordo com o FMI, o déficit fiscal primário de 2022 deveria ficar em 2,5%. No entanto, as contas atualizadas apontam para 4,5% só no primeiro semestre, enquanto o déficit fiscal total ronda os 9%.

A saída da crise encontra um Sergio Massa e uma Cristina Kirchner que querem ser candidatos nas eleições de outubro do ano que vem. Um ajuste fiscal pode ser a garantia de uma derrota. Um agravamento da crise também. No seu bilhete de renúncia, o secretário de Assuntos Estratégicos e braço direito do presidente Alberto Fernández resumiu a situação: “Renuncio ao meu cargo. Que Deus os proteja”.

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