Mundo
Aposta no cansaço
Apesar dos protestos, Macron mostra-se irredutível e promete seguir com a polêmica reforma da previdência


Emmanuel Macron aposta na vitória pelo cansaço. E pela força. O presidente francês mobilizou um contingente inédito de policiais na terça-feira 28, décimo dia de protestos contra a reforma previdenciária promulgada sem a anuência dos deputados da Assembleia Nacional. Cerca de 13 mil agentes, mais da metade em Paris, reforçaram os cordões de isolamento para fazer frente às centenas de milhares de franceses que tomaram as ruas da capital e das principais cidades do país. De nada adiantou. Ou, por outra, o policiamento robustecido, somado à intransigência de Macron em conversar com os sindicatos que lideram as manifestações, levou a mais uma tarde de fúria, destruição e prisões. Segundo o ministro do Interior, Gerald Darmanin, 201 manifestantes foram detidos e 175 policiais ficaram feridos nos violentos confrontos. “Propusemos uma saída e é intolerável que sejamos obstruídos novamente”, reclamou Laurent Berger, presidente da CFDT, uma das mais moderadas confederações de trabalhadores. Berger e outros líderes sindicais sugerem a nomeação de um mediador e a interrupção da reforma até que se encontre uma solução negociada. Macron recusa o diálogo e promete manter o cronograma de implantação das mudanças no sistema de aposentadorias – a reforma começa a valer em setembro. Em meio ao tumulto, os parisienses e turistas terão ao menos um alívio. Os garis anunciaram o fim da greve de três semanas, período no qual 7 mil toneladas de dejetos acumulados em becos, vielas e avenidas transformaram a Cidade Luz em “Cidade Lixo”.
O presidente da República acusa a esquerda de pretender “destruir” as instituições do país
A forma escolhida por Macron para aprovar a reforma desviou o foco do mérito da discussão. O debate a respeito da necessidade, urgência e conveniência de uma mudança no complexo sistema de pensões da França ficou em segundo plano após a primeira-ministra, Élisabeth Borne, aliada do presidente da República, recorrer ao controverso artigo 49.3 da Constituição, que permite ao governo decretar uma lei sem o voto do Parlamento, quando o Executivo não acredita ter maioria suficiente para aprovar um projeto. Criado em 1958, o mecanismo foi usado cem vezes desde então, por administrações socialistas ou de direita, mas raramente em um tema tão sensível. Borne sobreviveu por pouco a dois pedidos de censura, que lhe poderiam ter custado o cargo e mergulhado o país no caos absoluto. Ainda assim, de acordo com a oposição e inúmeros analistas políticos, Macron e a parceira queimaram o último cartucho de popularidade e estarão à frente de um governo moribundo até as eleições de 2027.
Basicamente, a reforma da previdência francesa eleva de forma gradual de 62 para 64 anos a idade mínima de aposentadoria. Para receber a pensão integral, os trabalhadores também precisarão contribuir por 43 anos a partir de 2027 ou completar 67 anos de idade. A maioria dos países da União Europeia adota regras parecidas. As despesas com pensões, projeta um estudo encomendado pelo governo francês, passariam de 13,8% a 14,7% do Produto Interno Bruto em 2032 sem as mudanças propostas. As transformações demográficas e a precarização do trabalho levam ao mesmo dilema visto em outras nações. No caso francês, em 1950, havia quatro trabalhadores para cada aposentado. Em 2040, a relação, diz o trabalho, será de 1,3 para 1. Economistas ouvidos pela mídia internacional divergem, porém, sobre a prioridade dada por Macron ao sistema previdenciário. Philippe Crevel, do think tank Cercle de l’Epargne, concorda: “Esta reforma é necessária, precisamos de mais trabalhadores para promover o crescimento econômico. Na França, a taxa de ocupação entre os idosos é relativamente baixa em comparação com outros países. Isso aumentaria automaticamente com a elevação da idade mínima de aposentadoria”. Michael Zemmour (não confundir com o extremista de direita Eric Zemmour), da Universidade Sorbonne, discorda: “Nosso sistema vai bem, a idade foi aumentada por meio de medidas anteriores. O governo só quer equilibrar o orçamento por ter concedido incentivos fiscais, principalmente a empresas. Querem desmantelar gradativamente o nosso sistema social”. O professor acrescenta: “O relatório dos especialistas prevê déficit em alguns anos, mas isso pode ser compensado por contribuições mais altas de empregados e empregadores”.
Irredutível, Macron prefere demonizar os manifestantes a abrir um canal de diálogo. Na segunda-feira 27, véspera dos protestos, durante reunião ministerial, o presidente recorreu a teorias da conspiração, segundo relatos à imprensa francesa de participantes do encontro. As manifestações, teria dito, “nada tinham a ver” com a reforma e tentavam “atingir nossas instituições e forças de segurança”. De quem seria a culpa? Do partido de esquerda França Insubmissa, que, na avaliação de Macron, perseguiria o objetivo de “deslegitimar a ordem razoável, nossas instituições e suas ferramentas”. Horas depois, o ministro Darmanin usaria termos semelhantes ao justificar o robusto esquema de segurança. “Eles vêm para destruir, ferir e matar”, discursou. “Seus objetivos nada têm a ver com a reforma. Seus objetivos são desestabilizar nossas instituições republicanas e trazer sangue e fogo à França.” O presidente parece, no entanto, envolvido em um jogo manjado com a primeira-ministra. Enquanto Macron desempenha o papel do “policial mau”, Borne é a “policial boa”, disposta a se reunir com líderes sindicais e representantes dos partidos de oposição. “Tenho dois objetivos: trazer a calma ao país diante dessas tensões e intensificar as respostas às expectativas do povo francês”, afirmou a primeira-ministra à agência France Presse.
Além do lixo nas ruas de Paris, as greves afetam o transporte, as escolas, os aeroportos, o setor de energia e até as atrações turísticas. Na segunda-feira 27, manifestantes bloquearam o acesso ao Museu do Louvre e o mesmo se deu dias antes na Torre Eiffel. Em torno de 15% dos postos de gasolina do país registram falta de combustível, há bloqueios de estradas no oeste e em várias universidades. Estudantes e jovens são, ao contrário do que se poderia imaginar, os maiores animadores dos protestos. “Todo mundo está mais furioso”, resumiu ao site NPR Clément Saild, que estava na estação ferroviária Gare de Lyon, na capital francesa, durante as manifestações da terça 28. “Tenho 26 anos e me pergunto se um dia vou me aposentar.” Embora os sindicatos prometam manter as mobilizações por tempo indeterminado, o governo comemora, por outro lado, a queda da adesão aos protestos e às greves. O décimo dia de manifestações reuniu menos gente: 740 mil, de acordo com as forças de segurança, 2 milhões, na conta dos organizadores. Os números da quinta-feira 23 foram 1 milhão e 3 milhões, respectivamente. O porcentual de funcionários públicos paralisados recuou de 15,5% para 6,9% em uma semana. Os dados não desanimam os sindicatos, ao contrário. Um novo dia nacional de mobilização foi agendado: 6 de abril. “Ainda existe uma disputa profunda”, declarou Berger.
Demografia. Há menos trabalhadores na ativa para sustentar os aposentados – Imagem: iStockphoto
O impasse continua e não tem hora para acabar, o que não impede as forças políticas de começarem o balanço de perdas e ganhos. Os partidos à esquerda do moribundo PS, irmanados aos sindicatos, são o principal alvo de Macron – entre outros motivos, por quase terem conseguido derrubar a premier Borne –, mas seria imprudente ignorar a chance de a extrema-direita liderada por Marine Le Pen canalizar a frustração popular nas próximas eleições. No segundo turno de 2022, Le Pen obteve 41,45%, contra 58,55% de Macron, beneficiado pelo voto “envergonhado” dos progressistas franceses, obrigados a optar pelo mal menor. Não se sabe se esse muro de contenção estará de pé daqui a quatro anos. O presidente da República impôs sua vontade agora. Se a imediata resposta das ruas não for suficiente, as urnas falarão em alto e bom som no futuro. O ódio costuma ser um mau conselheiro. •
Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Aposta no cansaço’
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