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Após eleição, Catalunha encara dura realidade de formar um governo

Resultado do pleito traz à tona os problemas de querer governar com base em um mantra, esquecendo-se de outros temas da agenda

Artur Mas representa a máquina política propagandística que mobiliza o discurso da independência para se perpetuar no poder
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Metade da minha família mora em Madri. A outra metade, na Catalunha. Falar de independentismo catalão quando estamos reunidos chega a ser um ato irracional e de uma paixão cega que cai na estupidez. Ninguém escuta, todos gritam e tentam impor seu argumento.

Falar da política catalã é cada vez mais um diálogo de surdos em que os que querem ficar na Espanha e os que querem sair parecem inimigos irreconciliáveis.

No domingo 27, os cidadãos catalães foram às urnas escolher seus representantes regionais. Foi uma eleição monopolizada pelo tema da possível independência da Catalunha do território espanhol e marcada pela ausência de diálogo entre os representantes de Madri e Barcelona. Como na minha família, um clima social cada vez mais tenso e polarizado. O voto, nessas circunstancias, perde seu brilho.

A participação bateu recordes históricos, de 77,4%, o que significa que os catalães querem ser incluídos nos processos de decisão e a apatia política, sempre dramática, não foi a vencedora da noite.

Essas eleições foram apresentadas pelo atual presidente catalão, Artur Mas, grande símbolo do separatismo, como um plebiscito pela independência. Segundo ele, se os partidos pró-independência ganhassem a maioria dos votos, o processo de separação estaria legitimado.

Bem, seguindo este raciocínio, os independentistas ganharam as eleições (obtiveram o maior número de deputados), mas perderam seu objetivo (não chegaram a ter a maioria dos votos).

A coalizão Junts pel Sí (juntos pelo sim, em português), do presidente Artur Mas, e a CUP (Candidatura de Unidade Popular), os dois grupos que exigem a independência, obtiveram 72 das 135 cadeiras do parlamento regional, mas não chegaram aos 50% dos votos (47,8%). Além disso, os partidos independentistas não ganharam mais votos do que na eleição passada, em 2012, e parece que suas cifras atingiram um teto.

Depois de uma campanha em que o tema da saída da Espanha foi tratado até a exaustão e com uma participação tão elevada, é quase imediato avaliar que o independentismo atual, embora muito representativo, não conseguiu ganhar o fôlego esperado. Não chegou aos 50% dos votos e, portanto, não representa a maioria. O que não quer dizer que o assunto de uma futura separação da Espanha não deva ser tratado. Numa democracia, devemos sempre conversar, mas a decisão da maioria deve ser aceita.

Além desses dados, a noite apresentou dois desastres nas urnas: primeiro o do Partido Popular (atualmente no governo da Espanha), sempre intransigente sobre o processo de separatismo, ao cair de 19 deputados nas eleições de 2012 para 11. A coalizão que integra o Podemos obteve também o número inexpressivo de 11 deputados.

Ambos os partidos devem estar preocupados com a perspectiva das eleições nacionais de dezembro. O Partido Popular continua sua perda de legitimidade e confiança e o Podemos, para muitos a grande aposta da nova política, sofre uma derrota perto demais do pleito nacional.

E agora? Com o dia depois do voto amanhece a dura realidade de formar um governo. Artur Mas tem a obrigação de fazê-lo em 20 dias. Ele se aferra ao cargo qual carrapato, representando a máquina política propagandística que mobiliza o discurso da independência para se perpetuar no poder. A aliança natural esperada é a de seu partido, Junts pel Sí, com a CUP.

O que ambos têm em comum? São independentistas. Algo mais? Não. A CUP, de origem antissistema e anticapitalista, rejeita apoiar uma nova nomeação de Artur Mas como presidente, já que este se parece mais a um caudilho do que a uma figura democrática.

Formar governo com os partidos que propõem que Catalunha fique na Espanha? Jamais. Seria destruir todos os argumentos políticos de Artur Mas. Formar governo com o Podemos? Talvez, mas como conciliar a velha política com a nova, que o Podemos diz representar? Esses são os problemas que aparecem quando se quer governar uma região com base em um mantra, esquecendo todos os outros temas da agenda.

A lição prioritária das eleições é que o diálogo é fundamental. A ruptura social é um fracasso. Todos devem aproximar linguagens, posturas, deixar propagandas e egocentrismos de lado. Se não somos capazes de debater, não somos capazes de viver em uma democracia. Independentistas ou não independentistas, não criemos inimigos.

Quando vejo o cenário intransigente da política catalã e espanhola penso nesta mesma intransigência ganhando força no cenário brasileiro. Um discurso de fanatismo que esquece propostas políticas concretas e explora o senso comum e a sensibilidade, chegando a ser perigosamente insensato.

Catalunha independente ou Catalunha espanhola, o que importa é o direito democrático de dialogar, o direito democrático da maioria decidir. O que importa é que saibamos fazer democracia com respeito e não como inimigos.

*Esther Solano Gallego, espanhola, Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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