Mundo
Anjo da morte
Condenada à prisão perpétua pelo assassinato de sete recém-nascidos, a enfermeira Lucy Letby só foi removida do posto após anos de alertas e suspeitas
Em um canto discreto de um café em Chester, o doutor Stephen Brearey relembra o momento exato em que conectou Lucy Letby a uma série de mortes incomuns de bebês na unidade neonatal onde trabalhavam. Foi numa reunião com a chefe de enfermagem e dois outros colegas, em 2 de julho de 2015. “Não pode ser Lucy. Ela é boazinha”, disse aos outros. Passados oito anos, a “Lucy boazinha” de 33 anos passará o resto de sua vida na prisão após ser condenada pelo assassinato de sete bebês e tentar matar outros seis.
Por meio de entrevistas exclusivas, descoberta de documentos confidenciais internos e meses de reportagens no tribunal real de Manchester, o Observer pode hoje contar toda a história de como foram levantadas preocupações sobre Letby durante meses, até que ela foi finalmente removida da linha de frente do atendimento em julho de 2016.
O fracasso dos executivos do hospital em tomar medidas urgentes custou a vida de ao menos dois bebês – dois irmãos de trigêmeos, assassinados com 24 horas de diferença – e prolongou os ataques de Letby a outros recém-nascidos no Hospital Condessa de Chester, no noroeste da Inglaterra.
O fracasso dos executivos do hospital em adotar medidas urgentes custou a vida de ao menos dois bebês
As decisões desses executivos serão alvo de um inquérito que examinará o que eles sabiam, a partir de quando e por que nenhuma investigação foi ordenada sobre o crescente número de mortos até julho de 2016, mais de um ano depois que se soube da presença de Letby em uma série de mortes inexplicadas. Após a condenação da enfermeira na sexta-feira 18, o Observer revela hoje que os detetives começaram a contatar outras famílias cujos filhos podem ter sido prejudicados por ela. A investigação examina os registros de mais de 4 mil bebês nascidos no Hospital Condessa de Chester e no Hospital Feminino de Liverpool em seis anos.
A história de como Letby foi finalmente detida começa em junho de 2015. Três bebês recém-nascidos morreram na unidade neonatal em 14 dias. Brearey, o pediatra-chefe da unidade, realizou uma revisão urgente. Os bebês – dois meninos e uma menina, com menos de uma semana de vida – eram saudáveis, apesar de prematuros. Um quarto bebê – a irmã gêmea de um dos meninos – quase morreu após seu quadro se deteriorar repentinamente.
Não havia causa óbvia para as mortes, por isso Brearey convocou uma reunião com Alison Kelly, chefe de enfermagem do hospital, e Eirian Powell, gerente da unidade neonatal, em 2 de julho. Houve apenas uma enfermeira de plantão nos quatro incidentes inexplicáveis. O nome dela era Lucy Letby.
Coragem. O doutor Stephen Brearey arriscou sua carreira para denunciar a enfermeira por trás das mortes suspeitas – Imagem: Redes sociais
Letby, então com 25 anos, trabalhava na unidade neonatal havia cinco. Ela era querida pela equipe, qualificada para cuidar dos bebês em terapia intensiva e frequentemente se oferecia para trabalhar em turnos extras. Até abril de 2016, morava num alojamento de funcionários a curta caminhada da unidade, o que era conveniente para trabalhar no turno da noite. Isso lhe deu cobertura para seus crimes, pois havia menos funcionários nesse horário.
Letby realizou muitos de seus ataques momentos após os pais ou enfermeiras saírem do berçário. Em uma ocasião, quase foi pega em flagrante. Uma mãe chegou à unidade neonatal por volta das 21 horas com leite materno para seus filhos gêmeos, quando viu Letby de pé junto de uma das incubadoras. Havia sangue fresco ao redor da boca do bebê, e ele gritava de dor.
Quando a mãe perguntou a Letby o que estava acontecendo, a enfermeira garantiu que o bebê estava bem: “Confie em mim. Sou uma enfermeira”. Em outubro de 2015, cinco meses após Letby ter sido conectada pela primeira vez às mortes inexplicáveis, sete bebês tinham morrido em circunstâncias incomuns – mais que o dobro da taxa de mortalidade em um ano.
Letby foi considerada culpada pelo assassinato de cinco dessas crianças. Os outros dois casos foram investigados pela polícia, mas não chegaram a nenhum julgamento. Outra revisão, em outubro de 2015, descobriu novamente que Letby foi a única integrante da equipe presente nas mortes inexplicáveis. Mas a conexão com Letby foi considerada apenas coincidência, segundo Brearey.
Letby sempre se oferecia para trabalhar à noite, longe dos olhares de colegas e pais
Letby, que já havia assassinado cinco bebês, foi autorizada a ficar na unidade. Médicos veteranos, dispostos a dar à enfermeira o benefício da dúvida, estavam cada vez mais preocupados. Pediram a um especialista independente, Nimish Subhedar, uma revisão dos casos. Ele descobriu que os bebês estavam estáveis quando se deterioraram repentinamente e que todos não responderam ao tratamento que salvava vidas.
Brearey enviou o relatório ao diretor-médico do hospital, Ian Harvey, no início de fevereiro de 2016 e solicitou uma reunião urgente. Ela demorou três meses para ocorrer. Este, segundo Brearey e outros médicos, é o ponto em que a ação deveria ter sido tomada. A conexão de Letby com as mortes agora era mais que apenas uma coincidência, mas parece que nada foi feito.
Em maio de 2016, quando Letby havia assassinado cinco bebês, um gerente de hospital produziu um documento de duas páginas respondendo às preocupações de Brearey e seus colegas. Foi a primeira vez que alguém, além dos médicos, iniciou uma revisão formal dos casos. Começava assim: “Não há nenhuma evidência contra LL (Lucy Letby) além da coincidência”.
Somente em junho de 2016 Letby foi removida da unidade neonatal, após assassinar dois irmãos trigêmeos saudáveis num espaço de 24 horas. Foram suas 12ª e 13ª vítimas. Segundo John Gibbs, outro pediatra consultor da unidade, este foi o “ponto de inflexão” que levou os médicos a exigirem o afastamento da enfermeira. Isso ocorreu, porém, um ano depois que um executivo soube pela primeira vez da associação de Letby com as mortes. A essa altura, ela havia assassinado sete crianças e tentado matar outras seis, tornando-a a pior assassina infantil em série da história britânica moderna. O que veio a seguir é descrito pelos médicos como um pesadelo kafkiano, no qual seus alertas foram descartados e eles foram tratados com desconfiança.
Essa atitude veio de cima para baixo, a começar pelo diretor-executivo do hospital, Tony Chambers. “Estava falando sobre todas as preocupações em uma de nossas reuniões com os executivos, no início de julho de 2016, e a resposta de Chambers foi: ‘Bem, isso seria muito conveniente’”, lembra Brearey. O executivo sugeria que os colapsos incomuns foram resultado de cuidados inadequados, e não de danos deliberados. Ao Observer, ele disse que suas declarações foram “retiradas de contexto”. “Também disse que havia um número significativo de fatores a serem considerados, incluindo demanda, acuidade, atendimento clínico, pessoal e ambiente.”
Justiça. Familiares das vítimas exigem a responsabilização dos gestores omissos – Imagem: Christopher Furlong/Getty Images/AFP
Apesar das preocupações com Letby, ela foi transferida para o escritório de risco e segurança do paciente do hospital. Não está claro quem tomou a decisão de transferi-la nem quanto tempo ela ficou lá. Mas o fato prova, segundo os médicos, que suas preocupações sobre Letby foram tratadas “com desprezo”. Os executivos finalmente solicitaram mais duas revisões em julho de 2016. Ambas concluíram que várias das mortes precisavam de investigação forense. Harvey, o diretor-médico, e Chambers, o executivo-chefe, disseram numa reunião com médicos, em janeiro de 2017, que Letby fora considerada inocente e retornaria à unidade neonatal em semanas.
Brearey e seus colegas consultores ficaram surpresos. Não apenas Letby foi autorizada a retornar à unidade, como os médicos receberam ordens de pedir desculpas a ela por levantar suspeitas. Dois consultores, Brearey e o doutor Ravi Jayaram, foram instruídos a entrar num processo de mediação com a enfermeira. Disseram-lhes que o pai dela havia ameaçado citá-los ao Conselho-Geral de Medicina, a menos que retirassem suas acusações.
Diante da ameaça de ação disciplinar, os médicos enviaram a Letby um pedido de desculpas cuidadosamente redigido em 28 de fevereiro de 2017. Três meses depois, após semanas de reuniões angustiantes sobre como evitar que Letby voltasse ao trabalho, Brearey e seus colegas contataram a polícia de Cheshire. Foi essa reunião, em 27 de abril de 2017, que desencadeou uma das mais complexas investigações dos últimos tempos na Grã-Bretanha.
O colega de Brearey, Jayaram, disse que “poderia ter dado um soco no ar” quando o então superintendente-chefe da delegacia, Nigel Wenham, disse que suas preocupações eram “algo com que (a polícia) tem de se envolver”. Letby estava a apenas seis dias de voltar à unidade neonatal. Ela nunca mais pisou na enfermaria. Os médicos só a viram novamente quando sua foto apareceu no noticiário da tevê, após sua prisão em julho de 2018. O detetive Paul Hughes disse ao Observer que as informações de Brearey e seus colegas foram “o fio de ouro” para sua investigação. “Eles foram muito corajosos em se apresentar e colocaram isso à frente de suas carreiras.”
Se havia uma arma fumegante neste caso, ela foi descoberta por um dos colegas de Letby. Em fevereiro de 2018, Brearey estava debruçado sobre a tela do computador quando viu algo incomum. Um bebê, conhecido como Criança F, tinha sofrido um grave colapso na unidade, em agosto de 2015, um dia após a morte inesperada de seu irmão gêmeo. No último parágrafo da carta de alta havia uma linha sobre seu nível de insulina e o nível de outro hormônio chamado peptídeo C. Em leituras normais, o nível de insulina estaria entre 200 e 300. O da Criança F era 4.657. Os resultados também mostravam um nível muito baixo de peptídeo C. Era uma prova conclusiva de que ele havia sido envenenado. Letby colocou insulina em sua bolsa de alimentação um dia após injetar fatalmente ar na corrente sanguínea de seu irmão gêmeo. Foi um milagre a Criança F ter sobrevivido.
Letby foi presa cinco meses depois, em 4 de julho de 2018. Em poucas semanas, dois dos altos executivos – Chambers e Harvey – deixaram o hospital. Kelly, a primeira a saber da conexão de Letby com mortes incomuns, partiu logo depois. Nenhum dos dirigentes foi obrigado a depor no julgamento de dez meses, mas espera-se que todos cooperem com o inquérito que se seguirá. Gibbs, um pediatra consultor que deu provas para o julgamento de Letby, disse que os executivos devem explicar por que não agiram antes. “As coisas poderiam ter sido feitas de maneira diferente.”
Letby é a terceira mulher na Grã-Bretanha a receber uma pena de prisão perpétua. Ela foi considerada culpada de sete acusações de assassinato e sete de tentativa de homicídio, relacionadas a seis bebês. O júri não conseguiu chegar a um veredicto sobre seis outras acusações de tentativa de homicídio.
Harvey, o ex-diretor-médico do hospital, disse que ajudaria no inquérito “da maneira que puder”, e emendou: “Eu quis que as revisões e investigações fossem feitas, para que pudéssemos contar aos pais o que havia acontecido com seus filhos”. Kelly, ex-chefe de enfermagem do hospital, afirmou que também cooperaria totalmente com o inquérito. “É impossível imaginar a dor sofrida pelas famílias envolvidas.” Chambers, o ex-executivo-chefe, acrescentou: “Realmente sinto muito pelo que todas as famílias passaram. Vou cooperar total e abertamente com qualquer investigação”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1274 de CartaCapital, em 30 de agosto de 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Anjo da morte’
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.


