Diversidade

Angela Davis e a Alemanha comunista

Há 50 anos, a famosa ativista dos direitos civis americana foi presa como terrorista. Na antiga RDA, ela era uma camarada de luta

Angela Davis
Angela Davis. Foto: Divulgação Angela Davis. Foto: Divulgação
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Natural e casual, elegantemente trajando óculos estilo John Lennon, cabelo afro, ao lado do então líder da República Democrática da Alemanha (RDA), Erich Honecker, que exibia um sorriso tenso e era uma cabeça mais baixo que sua convidada de honra americana.

 

Esta imagem deu a volta ao mundo. Angela Davis, que foi presa há 50 anos, em 13 de outubro de 1970, acusada de assassinato, teve muitos papéis que lhe renderam não só admiração, mas também críticas. Ativista dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, ela chegou a ser considerada uma terrorista extremamente perigosa pelo FBI (a polícia federal americana) e virou, ao mesmo tempo, ícone mundial da resistência anti-imperialista.

Angela Davis nasceu no Alabama em 1944. Cresceu em uma família estável, como filha do dono de um posto de gasolina e de uma professora. Seus pais sempre foram interessados em política, e ela já cedo pôde entrar em contato com ativistas de esquerda e comunistas.

O problema do conflito racial nos EUA apareceu cedo para Davis – quando vários ataques conhecidos como “Dynamite Hill” foram realizados por seguidores da Ku Klux Klan em seu bairro. Foram estas primeiras experiências que ela utilizaria mais tarde para justificar seu compromisso político e sua filiação ao Partido Comunista americano.

Mais tarde, Davis conseguiu um emprego como professora na Universidade de Los Angeles. Mas a jovem professora foi expulsa, acusada de comunista, por uma agente do FBI infiltrada. Quando sua filiação partidária se tornou conhecida, seu contrato não foi renovado. Davis foi colocada na lista dos dez “terroristas” mais procurados do FBI por ter feito campanha pela libertação dos detentos negros conhecidos como “Soledad Brothers”, que eram acusados de assassinar um carcereiro branco.

O irmão dos presos – um amigo de Davis – fez cinco reféns durante um julgamento. Cinco pessoas morreram numa troca de tiros. Mais tarde, descobriu-se que a arma do irmão estava registrada em nome de Angela Davis. O FBI lançou uma operação de busca – com sucesso. Davis foi presa em 13 de outubro de 1970. O presidente dos EUA, Richard Nixon, parabenizou o FBI pela “prisão da perigosa terrorista”.

Reconhecimento internacional

A prisão de Angela Davis gerou uma onda de solidariedade até a Europa. O slogan “Liberdade para Angela” era visto em toda a RDA, crianças em idade escolar enviavam cartões-postais com rosas para os EUA. Ela foi absolvida das acusações de conspiração criminosa, sequestro e assassinato em 4 de junho de 1972. Imediatamente depois, ela voou para a Europa e fez uma viagem através de países governados pelo comunismo. Em Berlim Oriental, a camarada americana foi recebida com entusiasmo por 50 mil pessoas. “Dedicamos nossa vida à luta contra o imperialismo”, teria dito a americana, segundo a imprensa do regime comunista, que a chama de “vítima da violência imperialista”.

“Honecker sabia que não era exatamente charmoso e que seu carisma moderado não era muito adequado para aparecer em um pôster nos quartos de adolescentes. Mas ele precisava de fotos fortes, com apelo emocional”, comenta a historiadora Kata Krasznahorkai, que pesquisa o movimento Black Power no Leste Europeu na Universidade de Zurique.

“Esta mulher negra lhe dando a mão era uma imagem que ele precisava por várias razões: para manter seu poder e para legitimar e buscar reconhecimento de seu Estado no mundo. Ele queria separar ideologicamente a RDA da Alemanha Ocidental e legitimar tudo isso em nível moral”, complementa Krasznahorkai.

Além disso, diz a historiadora, o político comunista tinha como objetivo cerrar fileiras com os jovens. “Com seu carisma foi um pouco difícil, mas sem o apoio da juventude ele não conseguiria. Para chegar aos jovens ele precisava desta figura pop, e a campanha para a libertação de Angela Davis chegou na hora certa”, comenta. Milhares de cidadãos da RDA saíram para comícios completamente voluntários para ver “a rosa negra do Alabama” ou a “camarada Angela Davis”, como foi chamada pelo jornal Neues Deutschland em 25 de julho de 1981.

Além disso, os países do bloco oriental queriam ser progressistas na questão do gênero, razão pela qual escolheram Angela Davis ainda mais como figura simbólica na luta contra a América arqui-inimiga.

Críticas

Não apenas os líderes do leste tentaram conquistar Angela Davis: também os artistas que foram oprimidos pelas ditaduras comunistas o fizeram. Mas houve pouco contato entre a ativista dos direitos civis e os ativistas do Leste. Artistas oposicionistas no antigo Bloco Oriental criticaram, por isso, a falta de solidariedade de Davis.

Segundo a historiadora Krasznahorkai, Angela Davis não buscou demonstrar solidariedade para com a oposição e o fez deliberadamente.

“Sua vida estava em perigo. Não só sua vida estava em jogo, mas também a luta pelo movimento civil negro, ela precisava operar em outro nível, além do contexto do racismo – e isso era o comunismo. Ela sabia quem poderia apoiá-la – não dissidentes e artistas oposicionistas, mas poderes estatais. Ela se dispôs a comprometer e sacrificar sua imagem por esse objetivo”.

Meio século após sua prisão, novamente as ruas veem manifestações por justiça. Desde a morte de George Floyd, os protestos contra a discriminação racial atingiram uma nova intensidade. Mas ao contrário dos anos 1960 e 1970, agora não há ídolos, nem rostos-símbolo do protesto.

“Este é um movimento descentralizado e anti-hierárquico que não produz Angela Davis e Malcolm X”, comenta a historiadora. Mas os protagonistas não se calam: “A própria Angela Davis diz que eles pararam muito cedo, o racismo sistêmico se tornou muito pior, ela espera que os jovens terminem o que começaram com um novo ímpeto”.

“Em uma sociedade racista, não basta não ser racista. Você tem que ser antirracista”, diz a ativista de direitos civis Angela Davis. Hoje com 76 anos de idade, ela ainda é politicamente ativa e frequentemente fala sobre temas como feminismo, direitos civis e antirracismo. Ela também ainda é lembrada por muitos na Alemanha. Uma exposição atual em Dresden é dedicada à ativista.

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