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Alta-tensão
A escalada recente do conflito em Gaza fez renascer o medo de uma guerra regional


O Oriente Médio tem escorregado em direção ao abismo de uma guerra regional desde o ataque do Hamas a Israel, em 7 de outubro, e da feroz resposta israelense em Gaza. Os últimos acontecimentos mostram que a borda do penhasco que o separa desse precipício pode desmoronar rapidamente. Poucas horas depois do início da guerra em Gaza, a milícia xiita Hezbollah do Líbano começou a disparar contra cidades e aldeias no norte de Israel, em solidariedade aos palestinos, provocando ataques aéreos israelenses em resposta, e as forças houthis do Iêmen atacaram navios no Mar Vermelho que tinham ou poderiam ter conexões com Israel.
Os Estados Unidos transferiram para a região dois porta-aviões e seus respectivos grupos de ataque, enquanto as bases norte-americanas na Síria e no Iraque sofriam repetidos ataques de grupos afiliados ao Irã, provocando rápida retaliação de Washington. Ao mesmo tempo, a Cisjordânia irrompeu em protestos contra os bombardeios a civis em Gaza, e colonos judeus extremistas rapidamente procuraram aproveitar a onda de raiva israelense, confiscando terras palestinas e aterrorizando seus moradores.
Cada um desses teatros de conflito tem o potencial de desencadear uma temida conflagração no Oriente Médio, e os últimos dias demonstraram que uma escalada, intencional ou não, pode facilmente levar Israel a um confronto aberto com o Irã, que incluiria os Estados Unidos. Um ataque aéreo israelense perto de Damasco, na Síria, matou uma figura importante do Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã, Sayyed Razi Mousavi, o responsável pela ligação militar entre a Síria e o Irã. Após a morte de Mousavi, em 25 de dezembro, a Guarda Revolucionária declarou em um comunicado que “o regime sionista usurpador e selvagem pagará por este crime”.
Enquanto isso, os houthis aliados de Teerã têm disparado contra a força-tarefa naval “Guardião da Prosperidade”, liderada pelos Estados Unidos, que tenta proteger a navegação no Mar Vermelho. Navios de guerra estadunidenses abateram dezenas de drones e um punhado de mísseis balísticos. O Comando Central dos EUA emitiu uma declaração na qual afirma que Washington tem “todas as razões para acreditar que esses ataques, embora lançados pelos houthis do Iêmen, são totalmente possibilitados pelo Irã”. Se um navio de guerra norte-americano for atingido, o presidente Joe Biden sofrerá intensa pressão para dar uma resposta decisiva, ao iniciar um ano eleitoral com seu mandato em jogo e os republicanos procurando concentrar-se em qualquer vestígio de fraqueza.
Israel, com apoio de Washington, mira o Irã
Na quinta-feira 28, o ex-primeiro-ministro israelense Naftali Bennett escreveu um comentário em um jornal dos Estados Unidos em que expressa a opinião de muitos integrantes dos sistemas de segurança de Israel e norte-americano de que estão condenados a combater grupos substitutos indefinidamente, até que o Irã seja confrontado diretamente. “O império do mal do Irã deve ser derrubado”, argumentou Bennett em The Wall Street Journal. “Os Estados Unidos e Israel devem definir claramente o objetivo de derrubar o regime maligno do Irã. Não só isso é possível, como é vital para a segurança do Oriente Médio. E de todo o mundo civilizado.”
Na sexta-feira 29, o Conselho de Segurança da ONU reuniu-se para debater a violência na Cisjordânia, mas a sessão foi rapidamente conduzida para a discussão sobre uma possível guerra regional. O embaixador israelense, Gilad Erdan, descartou a questão da violência dos colonos na Cisjordânia como uma distração da ameaça do Hezbollah no Líbano. “A situação no norte de Israel está atingindo um ponto sem retorno”, disse Erdan, repetindo uma advertência cada vez mais frequente das autoridades israelenses de que seu país resolveria o problema com as próprias mãos, possivelmente por meio de uma zona-tampão no sul do Líbano. “Se esses ataques continuarem, reitero que a situação se agravará, podendo levar a uma guerra em grande escala. O Líbano deve ser responsabilizado pela agressão que parte de seu território”, disse o enviado israelense.
Mohamed Khaled Khiari, secretário-geral-adjunto da ONU, declarou aos integrantes do Conselho de Segurança que, embora a maior parte dos combates entre Israel e o Hezbollah tenha ocorrido perto da fronteira, alguns ataques se aprofundaram nos respectivos territórios, “levantando o espectro de um conflito geral, com consequências devastadoras para as populações dos dois países”. Khiari acrescentou que “o risco de erros de cálculo e de nova escalada aumenta à medida que o conflito em Gaza continua”.
Lana Nusseibeh, embaixadora dos Emirados Árabes Unidos, expressou a preocupação do mundo árabe de que, na ausência de “decisões ousadas e talvez desconfortáveis” para reverter a tendência a um conflito regional, “a alternativa é ver a cena infernal de Gaza se expandir para a Cisjordânia, Israel, Líbano e outras partes do Oriente Médio”.
Desde o ataque do Hamas em 7 de outubro, a ONU estima que 304 palestinos foram mortos na Cisjordânia, incluídas 79 crianças, juntamente com quatro israelenses, três dos quais soldados. Outros quatro israelenses foram mortos em Jerusalém Ocidental num ataque de atiradores palestinos em 30 de novembro. Um dos mortos foi baleado por engano por um soldado israelense.
O número desproporcional de palestinos mortos mostrou que as forças israelenses têm conduzido uma campanha radical na tentativa de dissuadir uma revolta na Cisjordânia em solidariedade a Gaza, argumentou Khaled Elgindy, integrante sênior do Instituto do Oriente Médio em Washington. “A mentalidade israelense é de que eles estão impedindo uma terceira Intifada”, disse Elgindy. “Mas acho que da maneira como eles operam provavelmente estão mais perto de causar uma.”
O especialista aponta o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, como um elemento particularmente volátil na situação inflamável da região. Esmagadoramente responsabilizado pelos israelenses pelas falhas de segurança que permitiram o ataque do Hamas, Netanyahu enfrenta uma queda de poder, mas só quando os combates terminarem, ou ao menos diminuírem de intensidade. Uma escalada, por outro lado, poderia mantê-lo no cargo. “Netanyahu, francamente, dita os termos em todas as frentes, em Gaza, na fronteira com o Líbano, em toda a região, por suas próprias razões. Esta guerra é dele.” Ele acrescenta: “Acho que a cada dia que ela continua ficamos mais perto da expansão regional dessa desgraça”. •
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.
Publicado na edição n° 1292 de CartaCapital, em 10 de janeiro de 2024.
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